24 Mai 2022 12:07

Profundo ou diletante? O público decidirá, mas David Cronenberg não deixou de estar à altura da sua reputação de mestre do gore com a apresentação de "Crimes do Futuro" em Cannes, onde leva a sua obsessão com o corpo e as vísceras mais além do que nunca.

O filme, ambientado num futuro indeterminado, num mundo em ruínas onde a dor foi abolida, apresenta o actor favorito do realizador, Viggo Mortensen, desta vez no papel de um artista performativo muito especial, Saul. As suas criações são tatuagens feitas nos seus órgãos internos durante cirurgias exibidas em público. O lema: "A cirurgia é o novo sexo".

O bisturi é empunhado por Caprice, uma Léa Seydoux com cara de cera, enquanto um nebuloso Departamento Nacional de Registo de Orgãos, representado por Kristen Stewart, os monitoriza à distância.

O tema é por vezes obscuro, aborda a evolução da humanidade e o "naturalmente não natural", os "neo-organismos" cultivados dentro dos corpos por máquinas que parecem ter saído dos anos 80. Acima de tudo, o filme marca o regresso do realizador ao "horror corporal" após uma ausência de oito anos.

"Neste filme, tentei olhar para o que estava no interior do corpo", resumiu Cronenberg para a AFP, na sua sexta vez em competição.

"O meu interesse não é chocar e o meu objectivo não é fazer sair as pessoas da sala, mas isso pode acontecer", acrescenta o realizador dos filmes de culto como "A Mosca" e "Videodrome", que trabalha neste projecto há mais de vinte anos.

Os mais sensíveis serão testados logo na cena de abertura: uma criança a trincar uma cadeira de plástico como se fosse uma barra de chocolate, antes de ser assassinada, sufocada debaixo de uma almofada, pela sua mãe.

Um realizador à frente do seu tempo

"Há coisas que não gostaria de ver, mas são muito específicas. Não gosto de crueldade, especialmente crueldade para com as crianças (…) Eu não diria que me choca, mas não gosto de assistir", diz o realizador que tem três filhos e quatro netos.

O cheiro a enxofre que rodeia o realizador de 79 anos não é novo: a sua estreia na competição de Cannes com "Crash" em 1996, causou um escândalo, dividiu os críticos, mas ganhou um Prémio Especial do Júri. Um filme todo ele sexo, violência e acidentes de automóvel, que inspirou "Titane" de Julia Ducournau, o Palma de Ouro 2021.

Um tipo diferente de acidente ocorreu em "Crimes do Futuro", com as filmagens abruptamente interrompidas por falta de orçamento.

Actor magnético tornado famoso por "Senhor dos Anéis", "Green Book – Um Guia Para a Vida", ou "A Estrada", Mortensen, que tem sido muitas vezes filmado nu por Cronenberg, desta vez mostra literalmente as suas entranhas.

"Em algumas cenas, fiquei bastante feliz por não estar na minha própria pele", disse o actor à AFP, referindo-se em particular às cenas de evisceração, filmadas em Atenas com mais de 40 graus. "Claramente, há coisas que não podem ser feitas ao corpo em dois ou três takes!", brinca o ator.

"É uma história noir cinematográfica bem escrita e estruturada, mas também uma história de amor entre Léa Seydoux e a minha personagem, uma confiança sem limites, uma ligação física muito forte e uma história de sacrifício pelo bem-estar físico um do outro", continua.

"Temos uma amizade com David e uma confiança que me permite deixá-lo tentar coisas invulgares que não tentaria necessariamente com outros…", conclui.

Para ele, Cronenberg está "à frente do seu tempo" e os seus filmes precisam de ser vistos "quatro ou cinco vezes seguidas" para serem compreendidos.

  • AFP
  • 24 Mai 2022 12:07

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