27 Abr 2021 1:31
Hollywood já não é o que era. Eis uma constatação deixada pela 93ª cerimónia dos Óscares da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas: do cenário do espectáculo (Union Station, Los Angeles) às componentes sociais e políticas de muitas intervenções, tudo ou quase tudo reflectiu sinais contrastados, de interrogação e esperança, de uma América a refazer a sua diversidade — e também, de uma maneira ou de outra, a repensar-se depois do ciclo de poder protagonizado por Donald Trump.
Paradoxalmente ou não, esse reconhecimento de que Hollywood mudou, a começar pelas suas bases de produção — estúdios clássicos "vs." plataformas de streaming —, foi também vivido como o reencontro com um ideal primordial. A saber: um conceito de comunidade. Nesta perspectiva, as palavras de Chloé Zhao, apelando à "bondade", não foram um mero ornamento de circunstância, mas o enunciar de um princípio humanista que pertence ao património histórico e ideológico de Hollywood.
Daí que o saldo da coexistência entre estúdios e plataformas seja, desta vez, muito diferente do mero estabelecimento de um conflito dramático, porventura insanável, entre um lado e outro. Porque, de facto, em boa verdade, não há "um lado e outro"…
Mesmo o exemplo de "Nomadland" é revelador: a sua condição de "bandeira" de um certo espírito de produção independente (cuja legitimidade ninguém contesta) não invalida que reconheçamos que se trata de um objecto gerado por uma entidade, Searchlight, que, em última análise, não preenche os requisitos tradicionais de "independência", já que pertence ao actual maior império de Hollywood — leia-se: os estúdios Disney.
Paradoxo suplementar: na contabilidade das categorias ganhas, a Netflix ficou como recordista da cerimónia — sete estatuetas douradas, incluindo duas para "Mank" e mais duas para "Ma Rainey: a Mãe do Blues" — , com a Disney, precisamente, a surgir em segundo lugar, com cinco, as três de "Nomadland" e duas para "Soul". Segue-se a Warner, com três Óscares, dois para "Judas and the Black Messiah", um para "Tenet".
O que importa reter destes números não é uma banal lógica competitiva; antes um facto, de uma só vez artístico e financeiro (não necessariamente por esta ordem): o actual cinema americano existe alinhado — ou talvez, melhor, desalinhado — em muitas frentes, marcado pelas mais inusitadas hipóteses criativas.
Mais além, de facto. Está aí, sem equívocos, a necessidade de rever a dependência de Hollywood dos mecanismos industriais e de mercado impostos por super-heróis & afins, afinal correspondendo a uma urgência formulada por Steven Spielberg em 2013, quando lembrou a possibilidade de o sistema de produção chegar a um ponto de "implosão".
O que está em jogo não é um mero caderno de encargos que se encerre na "obrigação" de satisfazer determinadas temáticas (memórias afro-americanos, #MeToo, etc.)— os filmes não são sermões sobre as nossas próprias heranças ou o presente das nossas limitações.
Fiquemo-nos, por isso, com o exemplo feliz de "Soul": um dos seus dois Óscares, para melhor banda sonora — Trent Reznor, Atticus Ross e Jon Batiste —, consagrou um trabalho híbrido, por excelência, cruzando matrizes muito díspares, da experimentação das electrónicas aos ritmos do jazz. O discurso de agradecimento de Jon Batiste ficou, assim, como um dos momentos mais felizes da noite.