04 Jul 2024
Depois do sucesso de “Pobres Criaturas”, que venceu quatro Óscares e o Leão de Ouro em Veneza, o realizador grego Yorgos Lanthimos regressou ao Festival de Cannes onde, desde “Canino”, em 2009, tem sido presença habitual e onde já foi distinguido várias vezes.
“Histórias de Bondade” vira uma nova página no processo criativo do realizador com uma estrutura de três histórias e o regresso a um lugar mais sombrio da natureza humana.
“Começámos a pensar no filme há muito e na realidade era para ser só uma história, a primeira”, diz o realizador.
“Acho que a minha inspiração veio de ter lido ‘Calígula’. Comecei a pensar como é possível um homem ter tanto poder sobre as outras pessoas. Comecei a imaginar como seria no mundo contemporâneo alguém ter poder total sobre outra pessoa: a que horas acorda, o que come, se pode casar, se pode ter sexo, um acidente ou morrer”, explica.
A inspiração no imperador romano Calígula serve para o realizador explorar temas como submissão, manipulação, ou poder. “Histórias de Bondade” volta a ser cinema de provocação e de instinto com três histórias que têm em comum uma ideia de absurdo ou, nas palavras do realizador, a vontade de não intelectualizar:
“Creio que o lado físico e a linguagem corporal são muito importantes. Muitas vezes é por aí que começo o nosso processo de ensaios, começamos pela fisicalidade, fazemos coisas e tentamos coisas sem intelectualizar. Acho que quando temos uma estrutura muito sólida, uma história e personagens, é preciso fazer coisas, é necessário criar fisicamente o que irá ser o filme.”
Sem intelectualizar, Yorgos Lanthimos conta três histórias com um grupo de atores que se desdobram em várias personagens.
Na primeira história estamos no domínio da submissão, através da relação doentia de um patrão com um funcionário. A segunda, desenvolve-se com um casal que tenta ultrapassar sentimentos de desconfiança e paranoia. E, na última, uma seita é totalmente dominada pela ideia de um bem maior.
Yorgos Lanthimos: “o lado físico e a linguagem corporal são muito importantes”
Emma Stone é já uma cúmplice habitual no cinema de Yorgos Lanthimos. Willem Dafoe também transita de “Pobres Criaturas”, mas há novas entradas no universo do realizador grego, como Jesse Plemons, que saiu de Veneza com o Prémio de Melhor Ator.
Todos admitem a estranheza, mas também o efeito raro que o cinema de Lanthimos alcança.
“Sentimos muitas coisas diferentes antes de sabermos por quê. Muito disso tem a ver com a confiança”, assegura Plemons.
“Os ensaios ajudam a não cair na tentação de intelectualizar. A verdade é que o argumento e a história começam a entranhar-se sem nos darmos conta. No início, mesmo após ter lido o argumento algumas vezes, já tinha a história dentro de mim, mas ainda não sabia como podia pensar sobre ela.”
Emma Stone diz que a sua relação com o corpo nos filmes de Lanthimos consiste em dar “fisicalidade” a “um sentimento interior”, algo que a atriz resume numa frase: “em vez de falarmos, mostramos.”
Há uma premissa comum às três histórias que remete para a personagem misteriosa R.M.F. que surge no título de cada um dos capítulos, mas também pela ideia mais ampla de amor e de até onde estamos dispostos a chegar para ser amados.
Bizarro e por vezes incómodo, “Histórias de Bondade” volta a ter o olhar satírico de outros filmes do realizador, talvez porque a vida também é assim e o mundo ainda consegue ser mais estranho.
“A vida e muito do que aconteceu é negro e doloroso e também é ridículo e bizarro. Acho que tenho que incorporar tudo isso”, acrescenta Lanthimos.
“Tudo começa com a fisicalidade porque a vida não é mais do que pessoas com os seus corpos. Acho que é um reflexo do mundo que é estranho e louco, triste muitas vezes. Também é ridículo e engraçado e tudo isso deve integrar o trabalho que fazemos”, conclui.
Yorgos Lanthimos cria histórias violentas e sombrias para mostrar, afinal, o que é a bondade a que se refere o título.
Depois de conquistar atenções maiores e triunfar nos festivais e em solo americano, volta a propor um cinema mais despojado que olha com alguma perplexidade para os complexos e ambíguos seres humanos.