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09 Out 2025

“Sombras” é o novo filme de Jorge Cramez. Recentemente exibido no MoteLx pode ser visto nos cinemas a partir deste fim de semana. Marca o regresso de Jorge Cramez à longa-metragem, depois de filmes como “Amor, Amor” e “Capacete Dourado”. É a história de Marta e Jaime, um casal urbano sem filhos que optou pelo sossego do campo. Acolhem por uns dias uma criança vizinha, mas a visita noturna de um insólito animal vem abalar os raciocínios do casal sobre as coisas simples da vida.

Qual é o interesse pelo género específico do terror neste momento? Como surgiu essa motivação?

O ponto de partida, não é meu. Podemos considerá-lo uma encomenda. O argumento foi escrito pela Rita Benis, que teve apoio do ICA para o desenvolvimento de uma longa. Ela não queria realizar e o produtor, o Alexandre Oliveira, falou comigo, sabia que eu gostava muito do género e deu-me o guião para ler. Gostei e comecei a trabalhar o guião com a Rita e a prepará-lo para a rodagem.

Nas propostas de cinema de terror mais contemporâneo, a densidade dramática surge através da dimensão visual, algo que obviamente também está presente em “Sombras”, mas o argumento é determinante para construir a relação das personagens, os espaços, os locais onde a ação acontece.

Isto leva-me a partilhar contigo esta ideia de que, muitas vezes, faltam argumentos ao cinema de terror. Não sei se tens visto cinema de terror, mas gostava de perceber o que achas do género e de como ele tem sido tratado, ou destratado. Sabendo que gostas de terror e que trabalhas o género nesta longa-metragem, tens uma preferência por algum subgénero mais específico?

O cinema de terror tem muitos subgéneros. Podes trabalhar no slasher, no gore, tens o terror mais clássico, o terror psicológico. Aqui trabalhei nas convenções do género, no fantástico e no terror, mas igualmente no melodrama, que é também um dos meus géneros preferidos. O melodrama está construído neste triângulo familiar pouco normal – É um pai que quer ser pai, uma mãe que não quer ser mãe, que receia a perda de autonomia, acha que ainda não está na altura, há uma menina que entra na vida de casal, não tem uma e quer ter uma mãe, mas que nunca será esta.

Depois, com a chegada da menina, entramos no fantástico e no terror, com essa estranha presença que circunda a casa.

O terror no “Sombras” é trabalhado de forma muito clássica. Eu não mostro nunca o bicho, há um pano abstrato do olho, mas é aquela ideia de que aquilo que não se vê e que não podes imaginar é sempre mais horrível do que aquilo que podes mostrar. Eu trabalho um bocado nessa lógica. É aquela ideia de que o perigo está em nós e não no que se vê.

Foi pessoal a decisão de filmar no Algarve?

Tenho estado no Algarve, porque a minha mãe vive lá e passo lá muito tempo. Havia uma ideia inicial, que era a casa. Tinha a imagem que era uma casa submersa numa floresta, como se fosse quase uma muralha à volta, isolada do mundo, sem referências urbanas.

E a história da casa é interessante, porque quando preparei o dossier para o ICA fiz um longo dossier estético, onde fazia a planificação e punha muitas referências, muitos planos de cinema, porque tinha muito a ver com a luz.

Descobri esta casa num dossier que a Rita me tinha dado quando estava a preparar o guião. Fui com o produtor e com as duas pessoas encarregadas da decoração do filme até ao Algarve à procura de casas. Visitámos imensas casas de arquitetos e pronto.

Um dia, tirei o dossier e uma das pessoas sabia qual era a casa. E a casa que estava como referência passou a ser mesmo a casa real do filme que também é quase uma personagem.

Há pouco abordavas a questão melodramática de ser um filme de relações humanas com essa tensão perturbadora que o marca mais do ponto de vista do género. É um filme de relações humanas, mas também de uma anulação no sentido de alguém se anular perante o outro na construção de um relacionamento de algo que pode ser mais traumático. Podemos definir a psicologia deste casal desta forma?

Sim, sim. Porque há coisas claramente não resolvidas no casal. Há coisas extremamente não resolvidas ou subliminares, acho eu. E é a menina que, de alguma maneira, implode sentimentos que estão escondidos. Por isso, a primeira parte do filme são aquele longo passeio onde não falam sobre eles.

É um filme que claramente necessita do espectador. Há uma intenção clara de perturbar o espectador, de suscitar uma reação. Ele terá que completar aquilo que vê. É um filme muito pessoal. É isso que tu esperas, no fundo. Que o filme estabeleça uma relação com cada espectador.

Sim. Mesmo na construção, no processo de realização. Nós ficamos isolados na casa. Raramente vinhamos a Lisboa. E às noites jantávamos e conversávamos sobre as personagens, reescrevíamos os diálogos. E havia sempre a tentativa de percebermos, a existência deste animal. Podia ser qualquer coisa quase como qualquer coisa imaterial, que viesse diretamente deles ou da menina. Como se um deles pudesse ser ele. O bicho está lá, não o vemos, mas pelo menos vemos o que fica dos passeios noturnos ou daquela ronda noturna à casa, que são os vasos partidos, a terra, as plantas.

  • tiago alves
  • 09 Out 2025 16:59

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