Julia Ducournau: “Alpha” aposta no otimismo e no amor
No seu novo filme, a realizadora explora traumas geracionais inspirados no medo da SIDA.
Alpha tem como protagonista uma adolescente de 13 anos que vive com a mãe. Um dia chega à casa com uma tatuagem, um gesto que vai virar do avesso a vida das duas. Vive-se a ameaça de um vírus misterioso que transforma pessoas em estátuas.
No seguimento de “Raw” e de “Titane”, filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, a realizadora francesa Julia Ducournau continua a seguir o caminho do horror corporal.
“Alpha” acompanha a mutação física e psicológica de uma personagem feminina, mas é um filme mais otimista. A escolha de relações entre mãe e filha e entre dois irmãos traz luminosidade à história. Repete-se no amor incondicional:
O tema do amor incondicional já estava presente nos meus dois filmes anteriores. Apesar da obscuridade dos meus filmes, sou uma eterna otimista.
Acredito que cada vez mais, hoje em dia, o amor é um ato de resistência. Em todo o caso, é realmente assim, em certos momentos das nossas vidas, ou em certos momentos da história. No que diz respeito à sociedade em geral, é a única coisa que podemos.
A razão pela qual escolhi falar de irmãos e ter uma história entre mãe e filha é porque queria tentar transmitir o que poderia ser um trauma que se passava de geração em geração. Quando a dor não é digerida, em que o luto não era feito, em que a morte se tornava algo tabu. Ou seja, quando não havia nenhuma solução para o sofrimento.
Eu acredito sinceramente que é apenas através da aceitação, do deixar ir, que se pode acabar com esse ciclo.

Com uma ação que se assemelha ao aparecimento do vírus da SIDA, “Alpha” evoca os traumas e medos vividos por Julia Ducournau no tempo da juventude. A cineasta francesa acredita que as relações familiares se refletem na organização da sociedade:
Aqui aplica-se muito fortemente à família, mas para mim a família e a sociedade funcionam da mesma maneira. Acho que isso se aplica bem ao que vivemos hoje, porque sentimos que estamos num ciclo neste momento. É um ciclo impressionante, assustador, porque não sabemos quando é que vai acabar. Não sabemos se temos as armas, não sabemos o que fazer.
Acho que é realmente o caso de toda a gente. E para mim foi uma forma, creio eu, de fazer acatar-se desse medo ao abordá-lo dentro dessa família e também ao abordá-lo num filme de época, entre aspas, já que estamos a falar de um passado em que cada um vê o que vê, mas não estamos no presente.
Acredito que essa transformação me ajudou a ter uma distância que não tenho hoje, tendo em conta o estado de estupefação em que todos nos encontramos.
Em “Alpha” fala-se na língua kabila, o idioma berber. Foi uma escolha da cineasta francesa. Julia Ducournau, de origens argelinas, quis trazer para o filme memórias de infância. Algumas são evocadas em cenas do filme:
Eu sou meio kabila, por parte da minha mãe. Os meus avós falavam berber. É uma família matriarcal. Então, tudo o que se vê na cena da refeição aconteceu na minha infância. É uma cena de que gosto muito, porque para mim é uma linda lembrança.
No filme, além de se falar berber, além da cultura, espero que qualquer pessoa se possa reconhecer nesse caos que são as refeições em família, que muitas vezes são um enorme tormento ao qual ninguém quer ir.
Por outro lado, é um pouco engraçado, porque há gritos, há discussões, pessoas que levam a peito todas as coisas que se dizem. A mim traz-me lembranças de há 30 anos.
Tudo se ultrapassa. E é algo especial ser criança nesse mundo, estar perdida nesse meio e sentir que pertence a ele, especialmente quando se tem duas culturas e não se fala a mesma língua dos avós. Compreendemo-nos através do amor.

Mélissa Boros interpreta “Alpha”. A atriz francesa teve que fazer uma longa e intensa preparação física de acordo com a exigência do papel:
A preparação da minha personagem passou muito pelo corpo. Foi muito física. Praticamos muito desporto, também fiz ensaios, esse tipo de coisas. Foi bastante intenso para mim que não sou nada desportista, mesmo nada, mas a preparação foi importante.
Fizemos imensas repetições. Podemos ter tido momentos de improvisação, mas foi tudo muito, muito preparado. E eu sentia-me realmente muito confiante. Tinha as ferramentas necessárias para começar as filmagens. E foi principalmente graças à Júlia.
Mesmo que a Júlia seja muito exigente, nunca me sentia abandonada. Quando algo não estava bem, ela dizia. Quando estava bem, ela também dizia. Ela estava lá a 100% e deu-me 100% do seu tempo. Agradeço-lhe muito por isso.

Para o papel de Amin, o tio de Alpha, o ator Tahar Rahim teve também de fazer uma profunda preparação. Teve de emagrecer vários quilos para se colocar na pele da personagem:
Era preciso ter uma aparência física que correspondesse à personagem do Amin. O tio de Alpha. Foi um trabalho árduo. Não foi só fazer dieta, perder peso e ter uma aparência física. Foi necessário construir tudo o que estava por trás.
Para me preparar, estive com toxicodependentes. Consegui entrar na mentalidade deles e quis aqui prestar-lhes homenagem. Na realidade, nenhum deles quer estar ali. Por outro lado, o filme tem uma dimensão quase espiritual.
Vi a personagem de Amin como uma espécie de anjo caído a quem cortaram as asas e que se encontra perdido e que quer voltar para o mundo ao qual pertence.
O bonito neste filme é que todos se vão ajudar uns aos outros a libertarem-se. Ele tem, de certa forma, uma missão. Vai guiar a sobrinha Alpha para se tornar numa versão bem sucedida de Amin. Ela, ao mesmo tempo, vai libertá-lo e libertar a mãe. É por isso que este filme é cheio de amor, porque, no fim de contas, a sombra é apenas a ausência de luz.
“Alpha” é um filme sobre amor incondicional que traz à superfície memórias traumáticas que comprometem as relações em muitas famílias.