

LAVAGANTE: Mário Barroso conclui o último projeto de António-Pedro Vasconcelos
No centenário de José Cardoso Pires, Mário Barroso assume a realização do filme que nasce do livro "Encontro Desabitado" e ganha vida entre memórias pessoais e a densidade das personagens.
O último projeto inacabado de António Pedro Vasconcelos é agora concluído por Mário Barroso, o realizador de “Ordem Moral”, “Amor de Perdição”, e “O Milagre Segundo Salomé”. Diretor de fotografia, realizador, Mário Barroso, filma “Lavagante”, baseado na obra “Encontro Desabitado”, de José Cardoso Pires.
O filme estreia assinalando o século sobre o nascimento do escritor. Faria 100 anos de vida, neste 2 de outubro de 2025.
É justo começar por lembrar que este foi o último projeto de António-Pedro Vasconcelos. Como é que o Mário chega ao projeto e pega nesse argumento que já estava escrito?
Bom, falei várias vezes com o António-Pedro alguns meses antes dele falecer. Provavelmente, se ele tem realizado o filme, eu teria sido o diretor de fotografia, mas na altura em que ele me falou pela primeira vez, não conhecia o livro do Cardoso Pires, que, entretanto, li. Nunca mais falámos disso e, depois de o António-Pedro ter falecido, o Paulo Branco, que é o produtor, telefonou-me a saber se estaria interessado em realizar o filme.
Disse que sim, evidentemente, porque tinha uma grande amizade com o António e uma grande amizade com a família dele também. Foi assim que a coisa se passou. Foi muito natural, com uma grande espontaneidade.
Evidentemente, nenhum realizador se adapta imediatamente ao argumento tal como ele estava, mas o Paulo Branco deu-me autorização para o tornar mais conforme à minha própria sensibilidade e creio que respeito inteiramente a ideia do António-Pedro.
E sentiu necessidade de fazer alterações relevantes entre o argumento que recebe e o argumento que filma?
Não, alterações relevantes, não. Há sempre dois pontos de vista, duas pessoas diferentes têm necessariamente pontos de vista diferentes sobre certas coisas, mas não mudei nada de essencial.
Mudei o quê? Tornei o argumento mais conforme à minha sensibilidade e à minha própria experiência pessoal. Porque o filme passa-se – devo ser uma das raras pessoas que ainda pode falar disso – o filme passa-se em 1962. Era um adolescente, lembro-me bem desse período. Portanto, tive alguma tendência a tornar o filme mais conforme às lembranças que tinha dessa altura.
Estamos a falar do último texto de José Cardoso Pires, tem também esse enorme significado. Como é que a escrita de um conto publicado em 2008, como é que a escrita ressoa na época? E obviamente que estou também a despertar a memória do Mário Barroso, considerando que 1962 é um tempo vivido pelo Mário.
Há uma coisa que o António-Pedro fez que eu achei extremamente interessante. A história do Cardoso Pires é a história de uma chantagem afetiva feita a uma jovem rapariga. E o António-Pedro lembrou-se da “Tosca”, que é exatamente o mesmo tipo de problemática que se põe, uma mulher que cede às exigências de um polícia para salvar o companheiro que é preso, etc.
Nessa parte, não toquei, achei extremamente interessante. No que diz respeito à história em si e ao período em que ela se passa, aquilo desencadeou algumas coisas da minha lembrança, porque lembro-me… Devia ter 14 anos na altura, por volta disso, e lembro-me que naquele período, porque aquilo passa-se entre março e maio de 1962, portanto, entre o Dia do Estudante e as manifestações do 1.º de maio.
Foi a primeira vez na minha vida em que assisti a uma manifestação com carga policial. Já tinha estado em algumas manifestações mais cívicas, menos violentas, mas essa foi a primeira vez em que participei numa manifestação.
Lembro-me perfeitamente que foi no Campo Santana, ou Campo Mártires da Pátria, e lembro-me que foi a primeira vez que vi a polícia de choque carregar e atacar uma manifestação.
Na altura, isso não me punha problema nenhum, porque com 14 anos corria muito depressa, portanto, nem sequer medo tive. Mas lembro-me que fui para essa manifestação de gravata preta, porque havia o luto académico em relação ao Dia do Estudante que tinha sido proibido, lembro-me disso como se fosse hoje.
Portanto, quando li o livro e quando li o argumento, disse-me, bom, isto de facto corresponde a qualquer coisa que eu vivi, e fiquei bastante interessado em realizar o filme.
O António-Pedro Vasconcelos assumiu o interesse deste projeto, salientando que tem uma relevância para um público mais jovem, obviamente pelo tema, no contexto dos anos 60, também a movimentação estudantil que aconteceu nesse período da ditadura portuguesa. O Mário acompanha essa ideia, imagino, mas gostaria de perceber também como vê este filme perante o público que ele vai encontrar, a quem se destina, quais são as expectativas que tem?
Não sei se o tema do antigo regime de 1962 pode interessar muita gente, a mim interessa-me particularmente, evidentemente, tenho disso grandes recordações, mas há um lado que talvez tenha retirado um bocadinho do filme.
Havia um lado muito pedagógico, digamos assim, da parte do António-Pedro. Eu reduzi um bocadinho esse lado pedagógico, interessei-me mais pelo lado melodramático da história, interessando-me mais pela relação amorosa entre os dois personagens principais. Interessei-me em fazer um filme mais melodramático propriamente que de mensagem política. Agora está lá tudo, toda a gente sabe o que se passou durante esses anos catastróficos que foram os anos da ditadura salazarista.
Este é claramente um filme de personagens, falemos sobre a construção das personagens e também aquilo que pede aos atores e à escolha dos atores, Júlia Palha e Nuno Lopes, aqui em papéis principais e muito definidos do ponto de vista da densidade psicológica.
Fiquei radiante com os atores com quem tive a oportunidade de trabalhar, e acho que eles se integraram perfeitamente no espírito do filme. Nem tive que explicar grande coisa, porque eles leram o argumento e perceberam qual era a intenção não só do argumentista, mas do realizador também. E acolheram-me incondicionalmente na realização do filme.
Vale a pena olharmos nessa perspetiva, dada a densidade das personagens, a forma também como são filmados, fotografados, enquadrados na história. O Mário sente isso na relação com outros filmes recentes, que há aqui um gesto que dá outra dimensão ao ator em tela, em cinema?
Bom, eu essencialmente, quando realizo um filme, o que me agrada mais é trabalhar com os atores e tentar trazer qualquer coisa a mais do que está escrito no argumento. Depois houve outras modificações, digamos assim, não sei qual era a intenção do António Pedro quando ele ia realizar o filme, se ele teria tido a vontade de o realizar a preto e branco como eu o fiz.
Essa vontade de filmar a preto e branco, para já não esperava que fosse possível, mas o Paulo Branco, que era o produtor, quando falámos disso, estava inteiramente de acordo com essa possibilidade.
Fica hesitante, como é um filme para ser também difundido através da televisão, se a televisão aceitaria que o filme fosse a preto e branco, coisa que aceitaram imediatamente.
Estou muito satisfeito com essa ideia de termos filmado a preto e branco. A princípio pensei que poderia ser considerado como uma coisa um bocadinho… como hei-de explicar? Um bocadinho pretensiosa, um filme de autor e tal, mas não foi essa a intenção.
A intenção é que, de facto, o país de que se fala no argumento e no filme, no romance – isto é um chavão – mas o Portugal que abandonei em 67, porque eu saí do país em 1967, era um Portugal cinzento, triste. Não sei o porquê, à leitura do argumento e do livro, disse que isto tinha de ser feito a preto e branco. A cor não me agradava no filme.
Se bem que no Portugal em 62 também houvesse sol e cor, mas havia um ambiente que era extremamente pesado. Um ambiente de medo.
Eu, jovem, muito jovem, enquanto estive em Portugal, porque tive um compromisso militante muito cedo na minha vida, lembro-me de ter vivido sistematicamente os últimos anos que passei em Portugal com uma espécie de ansiedade, de medo, poderia dizer. Não era um medo que me impedisse de viver, mas um receio. O receio de chegar a casa à noite, de entrar em casa e de ver um carro parado e pensar logo nas coisas mais absurdas.
Ninguém me ligava nenhuma, na altura, mas não há nada a fazer. Havia esta sensação de tristeza e de cinzentismo. Não sei se passa no filme. Eu não quis caricaturar, mas quis deixar presente essa ideia, essa imagem do país dessa época.
A escrita de José Carlos Pires permite perceber justamente esse tempo. Outros filmes essenciais que vale a pena lembrar: “A Balada da Praia dos Cães” e “O Delfim”, são obras essenciais do cinema português.
Qual é a relação que tem com a escrita de José Carlos Pires? E imagina que ainda haja outras obras de José Carlos Pires que possam ser filmadas, ou necessitem de ser filmadas?
Necessitar, não diria. Que sejam obras que poderão dar outros filmes, não duvido de nada.
No sentido de emergência, de serem merecedoras, ou suficientemente interessantes.
Eu adoro as obras de José Carlos Pires, conheço-a, não digo toda, mas praticamente toda. Tive a sorte de o conhecer após o 25 de Abril, tive alguma oportunidade de contactar com ele. Tenho uma grande admiração pela obra dele.
Se quer que lhe diga sinceramente, não fosse o António-Pedro ter tido esta vontade de adaptar este filme ao cinema, eu, espontaneamente, não o teria feito. Felizmente, o António-Pedro teve essa lucidez e essa capacidade de perceber o potencial. O potencial pedagógico, o potencial físico, o potencial literário que havia na obra de José Carlos Pires.