7 Dez 2022 16:57
"Lobo e Cão", que estreia esta semana nos cinemas, é apresentado como a primeira longa-metragem de ficção da realizadora Cláudia Varejão, cujo percurso no cinema tem passado sobretudo pelo documentário.
O filme foi feito em São Miguel, nos Açores, num trabalho de escrita de argumento, desenvolvimento, produção e rodagem com a comunidade local e que teve um importante caráter social, porque envolveu não-atores e levou à criação de um centro de apoio para pessoas LGBTQI+.
A narrativa ficcional cruza os caminhos de três jovens, a viverem numa ilha "marcada pela religião e tradições", como se lê na sinopse: Ana, que "percebeu cedo que as raparigas têm tarefas distintas das dos rapazes", Luís, "o seu melhor amigo que tanto gosta tanto de vestidos como de calças, e Cloé, uma amiga que chega do Canadá, "trazendo consigo os dias brilhantes da juventude".
Cláudia Varejão filma o lado mais privado e pessoal de cada uma destas personagens, mas também o confronto com o contexto onde vivem.
"Estamos a falar de uma ilha que ainda é muito tradicional, tem heranças judaico-cristãs muito fortes, o peso da religião é muito presente. E ao mesmo tempo temos uma geração contemporânea que é altamente modernizada, ligada ao mundo pela Internet; são de uma forma geral muito ‘queer’, como são também os jovens do continente, muito diversos, cada vez com menos estereótipos ligados ao binarismo de género e de expressão, e isso a coabitar um território cercado pelo mar é muito visível", descreveu a realizadora.
Cláudia Varejão recordou que o filme foi construído com as suas histórias pessoais e com a das pessoas que aceitaram entrar no projeto, num trabalho colaborativo que durou vários meses e contou com a participação de dois psicólogos.
"Os jovens e as pessoas adultas que fazem parte do elenco não têm experiência de representação, mas têm qualquer coisa que se aproxima do desenho de personagem que estava estabelecido. (…) Eu queria muito construir com as pessoas e elas sentiram-se convocadas e com voz", explicou.
Em "Lobo e Cão" entram Ana Cabral, Ruben Pimenta, Cristiana Branquinho, Marlene Cordeiro, João Tavares, Nuno Ferreira, Luísa Alves, Maria Furtado, Mário Jorge Oliveira, entre outros.
Experiente no registo documental, em filmes como "Ama-san" (2016) e "Amor Fati" (2020), Cláudia Varejão percebeu que, em "Lobo e Cão", a ficção seria "um lugar de libertação e de voz" para os jovens ‘queer’ que a protagonizam.
"O documentário isola as pessoas no papel que elas já representam nas suas vidas. A ficção permite (…) o lugar de experimentação, de procura de outros papéis de si próprias, de uma expressão mais diversa que eu antes não tinha explorado. A ficção neste filme é um lugar de libertação e de voz, onde as pessoas, dentro do filme, dentro de um território seguro, podem exprimir-se com liberdade, podem ter a voz que normalmente no quotidiano acabam por ter receio de ter", disse.
Cláudia Varejão sublinhou que, no processo de trabalho do filme, nunca quis ter uma postura de quem está de fora daquela comunidade e daquele universo.
"Sou mulher, lésbica, sou uma pessoa ‘queer’ que se identifica com as pessoas, que partilha as mesmas questões, os mesmos problemas, as mesmas angústias. Não estou tão distante da realidade de cada um", afirmou.
Sobre o impacto da produção deste filme em São Miguel, Cláudia Varejão regista sobretudo o projeto de apoio social à comunidade LGBTQI + (A)mar – Açores pela Diversidade, com o envolvimento de entidades públicas, no combate à homofobia e na defesa da comunidade ‘queer’.
"Nestas coisas da liberdade de género, havendo um diálogo social e público, começando este diálogo de maior exposição, já não dá para voltar atrás", acredita a realizadora.
"Lobo e Cão", que teve uma estreia premiada este ano no festival de Veneza, onde venceu o prémio principal no programa paralelo "Dias dos Autores", é uma produção luso-francesa entre a Terratreme Filmes e a La Belle Affaire.