

Margarida Cardoso e “Banzo”: retrato íntimo e complexo da herança colonial
O filme revisita as relações coloniais em África e o impacto da escravatura. Rodado em São Tomé e Príncipe, reflete sobre os sistemas de opressão, os traumas das populações escravizadas e as ambiguidades humanas que atravessam gerações.
22 Jan 2025
“Banzo” é a terceira longa-metragem de ficção de Margarida Cardoso, um filme que remete para outra época. Uma ficção que acontece em 1907, em África, sobre a relação entre os colonos portugueses e os trabalhadores escravos.
A primeira estreia portuguesa do ano recupera um termo usado no período da escravatura. “Banzo”, palavra derivada de mebanza, do quimbundo angolano, significa casa. O título do filme remete para esse nome que se dava a uma doença, algo que hoje se chamaria depressão, a nostalgia das pessoas escravizadas que conduzia a estados de prostração e ao suicídio.
Em entrevista ao CINEMAX RTP, a realizadora de “Banzo”, Margarida Cardoso, fala sobre a condição nascida de uma era sombria da história e de como construiu o filme a partir dela:
Essa doença interessou-me muito porque, também metaforicamente, não seria muito fácil para os brancos e os colonos aceitarem essa agência das pessoas sobre o seu próprio corpo. Poderem decidir não estar cá, era uma coisa muito fora das ideias daquela altura, e foi a partir dessa ideia que construí o filme.
Claro que se passa depois da abolição oficial da escravatura, mas os sistemas são os mesmos, os sistemas dos contratados para as plantações são os mesmos. É um sistema replicado em muitos outros países que também tinham plantações, e digamos que é um sistema que ainda hoje nós vimos e encontramos nas nossas cidades, por todo o lado.
A escravatura foi oficialmente abolida em Portugal na segunda metade do século XIX, mas, nos territórios colonizados, persistiam estes sistemas que, na prática, mantinham as populações locais dependentes e dominadas pelo colono branco. Sistemas que ainda hoje são evidentes em São Tomé e Príncipe, onde “Banzo” foi filmado:
Eu acho que São Tomé tem tudo a ver com “Banzo”. Por ser uma ilha que teve aquele passado. Quase como um entreposto de pessoas onde tanta gente sofreu e que hoje continua a existir na paisagem, tanto geográfica como arquitetónica. As ruínas das roças continuam a ser o sítio onde as pessoas ainda vivem e fazem as suas comunidades. Também na memória coletiva das pessoas, nas histórias que contam.
Portanto, São Tomé, talvez pelo seu isolamento, por serem umas ilhas muito pequeninas, é uma espécie de portal para o passado e para um passado terrível, de uma violência terrível. Outra coisa que me atrai muito, já me atraía nos outros filmes, é a própria paisagem, a natureza, estou muito interessada nessa questão. Temos as plantas, temos os nevoeiros, temos as chuvas, temos todo aquele ambiente que para mim é fundamental e faz parte, é mais um personagem no filme, se não o principal.
Há registos de pessoas que morrem de nostalgia no hospital.
A nostalgia dos escravizados que serve como tema a “Banzo” foi amplamente estudada. Curiosamente, a investigação da doença tem origem helvética:
A nostalgia, que no Brasil se veio a chamar “banzo”, é uma síndrome muito estudada. Chamava-se Nostalgia Helvética. Há um médico que escreve várias coisas sobre isso, essa investigação vem dos exércitos suíços que estavam nas guerras napoleónicas e que se suicidavam em cadeia, de uma forma muito brutal.
Por exemplo, quando ouviam aquelas trombetas, qualquer coisa que lhes lembrava as montanhas, toda uma paisagem, e essa Nostalgia Helvética, a síndrome de depressão que provoca suicídio, é bastante estudada e até há um livro que se chama, traduzindo do francês, “Do Desejo de Morrer de um Negro”. Já é um estudo sobre as questões das pessoas que vinham de África e acabavam por se suicidar nas plantações, sobretudo na América do Sul e nas Caraíbas.
Em 1907, há registos de pessoas que morrem de nostalgia no hospital. Como um dos personagens diz no filme: ‘As anemias não são mais do que isso. Tristeza, muita tristeza.’ E, realmente, as pessoas acabavam por cair num estado de espírito que os levava a fisicamente desistirem.
A realizadora Margarida Cardoso tentou evitar que o filme fosse polarizado e admite a existência propositada de zonas cinzentas:
Há uma grande incompreensão entre brancos e brancos por uma questão de privilégios e de hierarquias. Personagens que vêm de Portugal muito pobres e vão trabalhar para as ilhas. Que trabalham na agricultura em Portugal, mas ali se tornam guardas. Há uma senhora que pensa que pode modificar o mundo, mas, chegando lá, vê que muito mais facilmente entra naquele esquema e transforma-se numa pessoa extremamente cruel, sem ter essa noção.
Tentei fazer isso, essa ambiguidade dentro dos personagens. Por exemplo, falando da personagem que a Sara Carinhas interpreta, a mulher do administrador, há uma ambiguidade tão grande, porque ela, no início, penso que mostra bons sentimentos. Depois, não consegue entender as coisas. Mesmo que tente, as coisas não se proporcionam. Gostava que o filme passasse isso.
Temos de aceitar que as coisas se passaram assim, refletir sobre elas. As coisas passaram-se assim e temos de aceitar a responsabilidade e olhar para esse passado de forma mais frontal.
Qualquer um de nós poderia ser muitos dos personagens que ali estão.
Olhar para o passado permite abrir a questão das reparações históricas às antigas colónias. Margarida Cardoso encara o tema como um processo:
É preciso criar momentos onde, simbolicamente, isso aconteça. Não acredito que possamos reparar as pessoas a nível económico, porque nem sequer pode ser avaliado, nem pago, porque é uma conta grande demais. E por mais que se diga, ‘vamos pagar’, não, não vamos pagar, porque não temos como.
Para mim, é um processo longo que envolve vários momentos simbólicos dessa representação. Não estou a dizer que sejam só ideias. São coisas físicas que têm de andar de um lado para o outro. Esse processo tem de ser feito e acho que vai permitir que, com o tempo, se vá ganhando coisas e se vão criando algumas reparações.
Talvez esteja a ser muito naïf, mas é essa a maneira como eu vejo. Acho que não pode ser nada que aconteça num ano, nem em dois anos, nem em três, nem em quatro. Esta mudança de mentalidades é muito longa e eu, que me debruço sobre estas questões há muito tempo, noto que, apesar de tudo, há uma grande dificuldade.
A realizadora acredita que “Banzo” contém pontos inovadores na forma como trata o tema da escravatura:
Talvez o elemento mais inovador do filme, em termos de perspetiva, seja o facto de os personagens representados poderem ser nós. Essa ambiguidade que ali está, ao não ser uma representação muito preto e branco, ou muito polarizada. Qualquer um de nós poderia ser muitos dos personagens que ali estão. Nesse aspeto, acaba por ser mais violento para quem o vê, porque essa identificação incomoda um pouco.
Para Margarida Cardoso, o racismo nasce também da nossa insegurança, dos problemas que a sociedade enfrenta e que impedem o entendimento:
Vivemos numa sociedade com problemas sociais muito grandes, com problemas culturais, de educação muito grandes, e onde toda a gente está a tentar sobreviver de várias maneiras, claro que isto não é o quadro ideal para nos entendermos e não termos medo. E esse medo, que é no fundo a nossa insegurança, é que provoca essa questão de racismo.
E há ainda muita gente com medo de não ser nada, se tirarem esse passado que eu ainda apanhei muito, aqueles livros gloriosos do Américo Tomás e coisas do género. Nunca houve um discurso que substituísse esse. E continuamos a navegar um pouco numas águas muito ambíguas.