19 Set 2024

Em maio, quando recebeu o prémio de melhor realização no Festival de Cannes por “Grand Tour”, Miguel Gomes chamou ao palco a equipa do filme. Agradeceu ao cinema português e lembrou os grandes realizadores portugueses que o inspiraram, João César Monteiro e Manuel de Oliveira.

Miguel Gomes ficou surpreendido com a Palma de melhor realizador, um feito inédito para o cinema nacional.

Não estava à espera, sei sempre que é possível, a partir do momento em que somos selecionados – desde que um filme que está selecionado para o concurso é possível, mas é improvável, acho eu.

Portanto, são sempre boas notícias e surpresas boas. O Festival de Cannes é o maior festival do mundo, foi de facto uma ocasião muito importante na minha vida, ter um filme distinguido com aquele prémio.

De tal maneira, Miguel Gomes não estava à espera de um prémio, que foi passar o dia numa ilha de Monges, junto à costa de Cannes.

No dia em que foi a cerimónia da entrega de prémios em Cannes, achámos que não teríamos prémio nenhum e decidimos zarpar para uma ilha a uns 30 minutos de Cannes, a ilha de Monges, começamos a percorrer a ilha à procura de um restaurante quando toca o telefone. Era do protocolo do Festival de Cannes, a perguntar onde estávamos e nós dissemos que estávamos na ilha. Eles entraram em pânico e disseram ‘apanhem já o barco, porque vão ter um prémio, portanto façam o favor de apanhar o barco e garantir que estão na cerimónia dos prémios.’

Nós de facto apanhámos o barco e estávamos lá na cerimónia, mas foi assim que nós encarámos essa possibilidade de ter um prémio naquele dia, achámos que era improvável e portanto há que gozar a vida, e não tendo prémio, vamos a um sítio onde nunca estivemos, porque vai ser um dia bem passado, com amigos, com família.

“Grand Tour” foi escolhido como o filme português candidato à nomeação para o Oscar de Melhor Filme Internacional em 2025. Miguel Gomes considera improvável, mas possível.

Em Hollywood, o peso da indústria conta muito mais e, à partida, diria que é mais improvável do que ter um prémio em Cannes. Cannes já era improvável, ser nomeado para os Oscars parece-me mais improvável, mas, de novo, é possível.

O filme acompanha a história de Edward, um funcionário público do Império Britânico na Birmania, em 1918, que foge da noiva Molly quando ela chega de Londres para o casamento. Molly, decide persegui-lo.

Um livro de viagens e o noivo em fuga pela Ásia inspiraram Miguel Gomes a realizar o filme “Grand Tour”.

Tem a ver com a leitura de um livro que chama-se “Um Gentleman na Ásia”, e é um livro de viagens, conta o percurso de um escritor inglês, do princípio do século XX, chamado Somerset Maugham por uma parte da Ásia, pelo Camboja, Tailândia e à Antiga Birmânia, que hoje em dia é Mianmar. Como em todos os livros de viagens, relata a descrição de templos e de mercados e de rituais locais e de culinária, enfim, mas também encontros com pessoas.

E há duas páginas nesse livro que relatam um encontro com um britânico, funcionário público em Mandalay, na Antiga Birmânia, noivo de uma senhora em Londres. Um dia, a senhora fartou-se e apanhou um barco, foi a Rangoon, a capital da Birmânia. Ele esperava-a no cais, de repente entrou em pânico e decidiu fugir. O noivo a fugir, ela em busca dele, a persegui-lo, atravessa uma série de territórios distantes, há uma espécie de jogo do gato e do rato entre aqueles dois.

Antes da pandemia de Covid-19, Miguel Gomes fez uma viagem pela Ásia. Esteve em Mianmar, Vietname, Tailândia e Japão. Recolheu imagens e sons para integrar na longa metragem. Depois, filmou as cenas em estúdio, com os atores, para fazer um filme de época do início do século XX.

Quis ser fiel a esse ponto de partida, do noivo em fuga e da noiva em perseguição, mas de uma certa maneira, quis também ser fiel ao próprio espírito de um livro de viagens. Ou seja, é impossível adaptar um livro de viagens, porque um livro de viagens é o relato da experiência de um viajante, num determinado tempo, mas achei que este filme devia ser feito havendo dois filmes ao mesmo tempo. A história de um casal de noivos, um a fugir, outro a perseguir, numa Ásia de 1918 fabricada em estúdio e, ao mesmo tempo, uma viagem, um grande tour também, nosso, feito pela Ásia hoje em dia.

Em “Grand Tour”, Miguel Gomes, cruza espaços, tempos e sensações. Foi um desafio juntar no filme épocas com mais de 100 anos de diferença.

O desafio seria, é possível manter esta história dos noivos e, ao mesmo tempo, intercalar como é o mundo hoje, os locais que eles estão a atravessar hoje em dia, como é que eles são e que são muito diferentes, porque há uma diferença temporal de mais de 100 anos.

Então, são tempos diferentes e ideias muito diferentes do que o cinema pode fazer e o cinema também tem a capacidade de inventar um mundo em estúdio. Portanto, inventar uma espécie de mundo paralelo, que só existe no cinema, mas que nos remete para o mundo real e passar de uma coisa para a outra sucessivamente.

Pareceu-me muito sedutor e há uma coisa que me interessa muito, não só neste filme como noutros que fiz – esta relação entre o nosso mundo da imaginação, o mundo da ficção e o mundo real, o mundo que existe sem nós.

Na realização de “Grand Tour”, Miguel Gomes identifica três rodagens distintas. A viagem para a Ásia, as filmagens da China, feitas à distância, e as filmagens em estúdio.

No fundo houve três rodagens, houve uma rodagem que foi a nossa viagem, onde nós estávamos fisicamente presente.

A 2 de janeiro de 2020 apanhámos um avião e fomos para Mianmar e passando de Mianmar para Singapura, de Singapura para a Tailândia, de Tailândia para o Vietname, daí para as Filipinas, daí para o Japão. Era suposto entrarmos na China e disseram-nos, não podem entrar na China, temos aqui um problema.

Estávamos em fevereiro de 2020, não percebemos bem que tipo de problema era – era era o início da pandemia.

Interrompemos a viagem nessa altura e só a retomámos dois anos depois para filmar à distância, então, com uma equipa chinesa, também a percorrer cerca de 3 mil quilómetros ao longo do rio Yangtze e a filmar enquanto nós estávamos num AirBnB no Areeiro, a dirigir o filme à distância. Um ano mais tarde, decidimos ir então para o estúdio e filmar o Gonçalo, a Crista, o resto dos atores, em estúdio, numa Ásia completamente falsa que o cinema pode fabricar e depois juntar aquilo tudo. Foi um momento absolutamente incrível.

Miguel Gomes escreveu o argumento em conjunto com Mariana Ricardo, Telmo Churro e Maureen Fazendeiro. O realizador considera que resultou num filme de aventuras.

É um filme de aventuras, é devedor a essa ideia do filme de aventuras. Foi uma aventura filmá-lo e espero que a aventura de vê-lo possa também ser bem sucedida.

Está vendido para muitos países e é um prazer poder partilhar este filme e saber que vai ser visto por pessoas muito diferentes, em países muito diferentes, com culturas muito diferentes.

O filme lida com isso, com essas questões culturais europeias perdidos num continente onde estão, mas que não controlam. E, portanto, há uma questão de relação cultural entre sítios muito diferentes e maneiras de entender o mundo, se calhar também muito diferentes.

Em “Grand Tour”, o ator Gonçalo Waddington tem o papel de Edward. Há sete anos, noivo de Molly, foge no dia em que ela chega para casar.

Um homem que vive ali no Oriente já há algum tempo e está prometido, ou prometeu-se, em casamento com a Molly. Tem o casamento prometido há sete anos, mas sei que há muito tempo que não a vê e eu acho que é esse tempo que, de alguma forma, vai espoletar aquela fuga. Porque eu acho que ele está ali à espera dela, naquele momento, naquele porto e está um bocado… Como é que ela vai estar? De repente vê que há um barco que vai sair e desaparece.

É uma fuga, mas é uma fuga por um amor ainda mais alto. Porque é um amor, de alguma forma, platónico. Porque ele só pensa nela, só idealiza na cabeça e deve ter algum receio que a realidade destrua esse amor platónico que sente por ela.

O percurso da personagem pela Ásia é também um percurso emocional. Gonçalo Waddington encontra uma justificação para a fuga.

Acho que ele tem algum receio que, de alguma forma, qualquer coisa nele estale e se estilhasse. Porque tanto tempo a viver sem ela e, de repente, é-se confrontado com o passado. Acho que é uma coisa que ele não consegue. E, de alguma forma, estamos a falar de alguém que, pela maneira como nós vemos no filme, está habituado há muito tempo a estar sozinho. E disso, se calhar, inconscientemente, que ele tem algum receio. Quando ela chega, significa que a solidão terminou.

“Grand Tour” tem feito um trajeto no estrangeiro. Gonçalo Waddington tem expectativas elevadas em relação aos Oscars.

Pelo menos ao Festival de Cinema de Nova Iorque vai. Se lá tiver distribuição do filme, quem sabe? O céu é o limite.

A personagem Molly segue o rastro do noivo em fuga. Neste “Grand Tour”, a atriz Crista Alfaiate encontra uma mulher decidida, pouco habitual para a época.

A Molly é uma mulher inglesa, muito obstinada e muito entusiasmada com as aventuras que vai encontrando no seu percurso de busca e de perseguição do noivo. E sim, à época não seria muito usual. Mas se calhar estava na vontade e no desejo de qualquer mulher poder ter essa liberdade e poder usufruir de uma viagem destas e de encontros como este.

O riso da Molly é muito particular. Foi uma das características que Crista Alfaiate trabalhou nos ensaios.

Era uma coisa muito marcante já no guião. Portanto, fomos descobrir primeiro esse riso.

Fizemos ensaios isolados, com as personagens isoladas. Acabámos por juntar as personagens, ou por assistir aos ensaios um do outro. Neste processo vai-se construindo e encontrando um tom, as motivações de cada cena.

A atriz recorda como foi incrível ter estado no Festival de Cannes e “Grand Tour” ter sido premiado.

É muito emocionante. Não se trabalha para os prémios, mas uma vez que eles vêm é incrível. É o reconhecimento de um trabalho e acho que é muito importante essa distinção, quer para o filme, que pode circular mais, ser mais visto, em mais salas, em mais países, quer para o cinema português também.

“Grand Tour” foi produzido por Uma Pedra no Sapato. É uma produção conjunta com Itália, França, Alemanha, China e Japão.

Depois do prémio de melhor realização no Festival de Cannes, o filme estreia-se esta semana nos cinemas portugueses.

  • Margarida Vaz
  • 19 Set 2024 20:13

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