25 Mai 2024

Perseguido pelo regime iraniano, que lhe retirou o passaporte e o condenou a anos de prisão, Mohammad Rasoulof conseguiu fugir do país a tempo de estar em Cannes para apresentar o seu filme “The Seed of the Sacred Fig”.

Produzido clandestinamente, mas com uma execução irrepreensível, “The Seed of the Sacred Fig”, candidato à Palma de Ouro, nasceu na mente de Rasoulof durante a estadia na prisão e reflecte o vasto movimento de protesto contra o regime no final de 2022, no seguimento da morte da jovem Mahsa Amini.

Transformado em símbolo da liberdade de expressão, Rasoulof foi aplaudido de pé antes da projeção do filme em Cannes.

Na passadeira vermelha e depois, no auditório, o realizador exibiu fotografias de dois dos seus principais atores: Missagh Zareh e Soheila Golestani. Subiu as escadas ao lado da atriz iraniana Golshifteh Farahani, que vive no exílio em França há quinze anos. Foi também acompanhado pela sua filha Baran, uma passagem de testemunho simbólica, uma vez que foi ela que recebeu o Urso de Ouro em Berlim, em nome do pai, proibido de sair do Irão há quatro anos.

Após anos a desafiar a censura, Rasoulof foi condenado a oito anos de prisão, cinco dos quais de pena efetiva. Para não voltar para trás das grades, teve de se resignar ao exílio, à custa de uma fuga clandestina para a Europa.

“Quando estava a atravessar a fronteira, virei-me, olhei pela última vez para a minha terra natal e disse para mim mesmo: ‘Vou voltar'”, contou o realizador, durante um programa na televisão francesa. “Penso que todos os iranianos que tiveram de partir devido a este regime totalitário têm uma mala pronta em casa, na esperança de que as coisas melhorem”.

Rasoulof não visitava Cannes desde 2017 quando recebeu o prémio da secção Un Certain Regard por “A Man of Integrity”, sobre a corrupção. No ano passado, foi impedido de estar presente como membro do júri desta secção paralela.

O seu novo filme, promete voltar a perturbar os poderes instituídos, contando a história de um juiz de instrução que se afunda na paranoia, numa altura em que irrompem grandes manifestações na capital Teerão.

 

“é preciso exercer pressão política sobre o regime iraniano para que deixe de reprimir e censurar os artistas”

O que significa filmar clandestinamente no Irão?

“São necessários vinte anos de aprendizagem para o conseguir. Caso contrário, qualquer pessoa pode fazer um bom filme clandestino! Falando mais a sério, quanto mais se frequentam os interrogatórios e os serviços secretos, mais se aprende a contrariá-los. Porque nos mostram os nossos e-mails, percebemos como escrevê-los (para não sermos detetados). Mostram-lhe os seus extratos bancários. Percebe que não devia ter usado o seu cartão de crédito. A cada vez que se passa tempo com eles, percebe-se como eles nos encontraram. E como fazer para que não nos encontrem da próxima vez. Admito que o meu negócio tem um certo lado de gângster. Mas a prisão é um bom sítio para aprender estas coisas”.

Em Cannes, exibiu fotografias de dois dos seus atores…

“Toda a equipa no Irão está a ser ameaçada e preocupada, incluindo o meu diretor de fotografia, o cenógrafo, o figurinista, o maquilhador e todos os outros. Todos os que trabalharam nesta equipa e para este filme são atualmente alvo destas intimidações. Escolhi estes dois atores como símbolo desta equipa porque só tenho duas mãos”.

O que pode proteger aqueles que permaneceram no Irão?

“Penso que é imprescindível exercer pressão política sobre o regime iraniano para que deixe de reprimir e censurar os artistas. Descrever simplesmente a sua situação e dizer quais as pressões a que estão sujeitos é um bom começo. Talvez seja um pouco idealista pensar que essa pressão política vai acontecer, mas estou convencido de que é a única forma de conseguir uma mudança”.

Disse que espera que a ditadura desapareça. Em que se baseia essa esperança?

“Há cerca de dois anos, quando começou a campanha pela libertação das mulheres (“Mulher, Vida, Liberdade”), ninguém pensou que, após a morte de Mahsa Amini, as pessoas se manifestariam da forma como o fizeram. Penso que o povo iraniano está muito zangado, mas está à espera de uma oportunidade para o demonstrar.”

A morte do Presidente Raissi abre um período de incerteza. Acha que o sistema pode mudar a partir do interior?

“Há sempre esperança, mas é difícil prever os acontecimentos políticos. Sou incapaz de o fazer. Tudo o que espero é que essa mudança se concretize e que o povo iraniano possa respirar.”

Quais são as suas perspetivas agora que saiu do Irão?

“Não tenho planos imediatos para regressar ao Irão e vou trabalhar, vou fazer filmes, vou entrar muito em breve noutro projeto. Talvez um projeto de animação, em stop motion com personagens de barro, ou qualquer outra coisa. Vou inspirar-me muito rapidamente na minha experiência na prisão”.

Apoio aos cineastas

Ao acolhê-lo pessoalmente, Cannes está a enviar um sinal “a todos os artistas do mundo que sofrem violências e represálias na expressão da sua arte”, disse à AFP o delegado geral do festival, Thierry Frémaux.

A Amnistia Internacional afirma que o Irão, abalado por um movimento de protesto no final de 2022 após a morte da jovem Mahsa Amini, executou 853 pessoas em 2023, o número mais elevado desde 2015.

Os cineastas são regularmente acusados de fazer propaganda contra o regime, num país onde os conservadores detêm a totalidade do poder. É pouco provável que esta situação se altere após a recente morte do Presidente Ebrahim Raissi num acidente de helicóptero.

Os festivais internacionais e a ressonância que proporcionam são uma forma importante de reconhecimento para os cineastas iranianos em desacordo com o regime, como Jafar Panahi (“Taxi Téhéran”) ou Saeed Roustaee (“Os Irmãos de Leila”), que são regularmente selecionados apesar da repressão que enfrentam.

Várias personalidades do cinema manifestaram apoio a Mohammad Rasoulof numa carta aberta, incluindo a atriz refugiada iraniana Zar Amir Ebrahimi e a atriz de “Anatomia de uma queda”, Sandra Hüller, para além de cineastas como Fatih Akin, Agnieszka Holland e Laura Poitras, e dois candidatos à Palma de Ouro de 2024, Payal Kapadia e Sean Baker.

Para além de “The Seed of the Sacred Fig”, o júri presidido por Greta Gerwig assistiu na sexta-feira ao último dos 22 filmes em competição, “La Plus Précieuse des Merchandises”, de Michel Hazanavicius (“O Artista”), uma longa-metragem de animação que evoca o Holocausto.

O palmarés do 77.º Festival de Cannes é anunciado no sábado à noite.

  • CINEMAX - RTP c/ AFP
  • 25 Mai 2024 10:33

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