13 Nov 2024

“O Jovem Xamã” é a primeira longa-metragem da realizadora Lkhagvadulam Purev-Ochir. Conta como um adolescente tenta conciliar a rotina de estudante de liceu com a responsabilidade de um xamã espiritual.

O filme teve estreia mundial na seção Orizzonti do Festival de Cinema de Veneza e o protagonista, Tergel Bold-Erdene, ganhou o prémio revelação. “O Jovem Xamã” está também selecionado como a proposta da Mongólia para os Óscares.

Em 2022, já vencera o prémio Orizzonti para melhor curta-metragem com “Snow in September”.

Nascida em Ulan Bator, capital da Mongólia, Lkhagvadulam Purev-Ochir vive em Portugal a tempo inteiro desde 2018 após ter concluído o mestrado em guionismo na Universidade Lusófona e fez questão de arranjar uma coprodutora portuguesa para o seu primeiro filme de longa duração:

O filme é uma coprodução entre a Mongólia, França, Portugal, Alemanha, Holanda e Suíça. Mas diria que as principais casas de produção que trabalharam no filme foram a mongol, a francesa e a portuguesa Uma Pedra No Sapato. Como estava a viver aqui, queria trabalhar com uma coprodução portuguesa. Queria fazer a pós-produção aqui e trabalhar com portugueses porque me sinto muito confortável aqui.

Por isso, fiquei muito contente por a Uma Pedra no Sapato ter concordado em coproduzir connosco. Fiquei extremamente feliz pelo facto de um diretor de fotografia tão experiente como o Vasco Viana ter concordado em trabalhar no filme, e por ter uma amiga que já conhecia, a Selma Lopes. Conheço-a de trabalhar em projetos escolares na Universidade Lusófona. Fiquei muito contente por ela também ter vindo fazer parte do projeto. Por isso, foi uma colaboração muito feliz com cineastas portugueses.

Espero que esta colaboração continue no futuro, porque, em termos de personalidade e carácter, acho que os mongóis e os portugueses se misturam bem e trabalham bem em conjunto, basta ver como o Vasco e a Selma se relacionaram com a equipa mongol durante as filmagens. Só de olhar para essas interações, sei que é uma colaboração ótima e uma mistura muito boa de diferentes equipas.

Também acho que os portugueses, por terem metade do país virado para o oceano, possuem uma característica bastante semelhante aos mongóis, o facto de sermos muito adaptáveis à natureza. Creio que devido a esta característica, os portugueses são muito adaptáveis e conseguem responder bem à mudança e a situações extremas. E penso que essa é uma qualidade comum entre mongóis e portugueses.

O facto de ter um parceiro e um filho que é português ajudam a que Lkhagvadulam Purev-Ochir pense continuar a viver em Portugal. No entanto, a cineasta gostaria de combinar o gosto pelo país adotivo com as suas raízes. A surpreendente solução pode estar num livro do escritor angolano Pepetela:

Um dos meus maiores desejos é fazer um filme em Portugal, mas, como mongol, é difícil para mim encontrar temas com os quais possa trabalhar confortavelmente. No entanto, encontrei um tema e um filme que posso muito bem fazer em Portugal. Estou a pensar adaptar um livro chamado “O Planalto e a Estepe”, do escritor angolano Pepetela, sobre um angolano de ascendência portuguesa que estuda na União Soviética nos anos 60 e se apaixona por uma rapariga mongol que também estuda em Moscovo.

É um encontro muito estranho entre duas pessoas de dois cantos do mundo. E é sobre a saudade que sentem uma da outra ao longo das décadas. Conseguem finalmente reencontrar-se após a queda do comunismo. Em Cuba, entre todos os lugares. Trata-se de uma história de amor que se passa sobretudo nas suas cabeças, porque se conhecem e se apaixonam em Moscovo, mas depois são separados. Ao longo das décadas, recordam-se um do outro, anseiam um pelo outro e esperam voltar a ver-se.

Penso que se trata de uma história muito bonita, privada e pessoal sobre a história da União Soviética, contada através do ângulo de dois países que não faziam parte da União, mas que estavam diretamente ligados a ela. A Mongólia era um Estado satélite e Angola tinha uma história ligada ao comunismo e ao socialismo.

Espero realmente adaptar este livro. É um dos meus maiores sonhos porque, mais uma vez, adoraria fazer um filme em Portugal, mas, de alguma forma, ligar-me às minhas raízes na Mongólia. E este livro foi como um pequeno tesouro que me caiu no colo.

A realizadora considera que a seleção para a secção Orizonti no Festival de Veneza e o prémio de interpretação recebido significam bastante para a comunidade cinematográfica da Mongólia:

Era o primeiro festival a que o filme ia. O facto de ter estreado num festival tão grande e importante e de o ator principal ter sido galardoado com o prémio de melhor ator, foi um começo fantástico. Também significa muito para a comunidade cinematográfica da Mongólia. Significa que o mundo está a olhar para a Mongólia. Significa que o mundo está a tomar conhecimento e que sentimos que fazemos parte do mundo. A Mongólia é um país tão distante, tanto geograficamente como em termos, acho eu, do imaginário coletivo do público mundial.

Está ligado à ideia de uma bela paisagem rural, ou à história do império mongol. Por isso, a Mongólia é sempre uma espécie de fantasia, ou um lugar antigo no imaginário coletivo do mundo. Mas participar num festival como Veneza e ser premiado, trouxe-nos para o momento atual. Também senti que os jovens da Mongólia fazem parte da geração mais jovem do mundo.

Sei que é um disparate, porque é óbvio que fazem parte do mundo, mas por vezes, ser mongol pode parecer muito solitário, porque só temos dois vizinhos, dois vizinhos muito amigáveis, a China e a Rússia. Não partilhamos a língua nem a religião com estes países. Obviamente, partilhamos a história, mas somos muito diferentes e estamos muito, muito longe do resto do mundo.

O envolvimento no tema do filme levou também Lkhagvadulam Purev-Ochir a compreender melhor a ligação entre o xamanismo ancestral, a espiritualidade e a Mongólia moderna:

Quando estava a fazer este filme, compreendi algo sobre o xamanismo e sobre a espiritualidade em geral e o que ela faz na vida das pessoas. E o filme fala do xamanismo de uma forma muito mundana. Não é retratado como uma espécie de coisa mágica. É retratado como algo que existe no dia a dia dos mongóis modernos.

Através desta representação, compreendi algo sobre o xamanismo e sobre a espiritualidade em geral, que é o facto de a espiritualidade estar muito ligada às nossas emoções. Num sentido histórico, humano, antropológico, também num sentido fisiológico, psicológico. A espiritualidade é a forma como regulamos as nossas emoções. É como lidamos com as emoções que são difíceis.

Porque quando vamos a um xamã, não vamos lá para falar de algo mundano. Normalmente, ir a um xamã significa que aconteceu algo na nossa vida com o qual é muito difícil de lidar. Normalmente, é algo relacionado com a morte. Fala-se de doenças, de catástrofes que acontecem à família, etc. Por isso, penso que o xamanismo é sobre como ultrapassar coletivamente uma catástrofe na vida de uma pessoa e como lidar coletivamente com emoções que são difíceis de lidar a solo.

Apesar de ser uma cultura ancestral, faz realmente parte da vida mongol desde o tempo de Genghis Khan que também tinha um xamã que viajava com ele. Assim, esta cultura manteve-se durante pelo menos mil anos até agora, apesar de, historicamente falando, ter havido um enorme surto de budismo na Mongólia. O budismo tentou substituir a cultura xamânica como poder sócio-político. Depois da conquista do budismo, tivemos também o comunismo durante quase cem anos. E o comunismo tentou apagar todos os tipos de espiritualidade, incluindo o xamanismo.

Atualmente, na Mongólia, temos uma cultura muito globalista e modernista, aberta a tudo. Somos um país progressista, aberto, liberal, que aceita todas as religiões e todos os tipos de influências culturais diferentes do mundo. No entanto, o xamanismo continua a fazer parte da nossa vida moderna.

Acho que a razão é exatamente o que eu dizia sobre o porquê do xamanismo existir. Precisamos dele como fonte de conforto emocional, especialmente na Mongólia dos nossos dias, porque somos um país hiper-capitalista e em rápido progresso. As emoções e o bem-estar, o bem-estar espiritual, psicológico e emocional do povo são negligenciados neste progresso acelerado que a Mongólia está a atravessar.

A razão pela qual penso que, nos últimos 20 anos, o xamanismo tem tido algum ressurgimento na cultura mongol está diretamente relacionada com o facto de as pessoas precisarem dele. As pessoas precisam de sentir que há mais na vida do que este rápido progresso que estamos a viver, esta rápida e hiper-focalização no materialismo, na posse de coisas, no sucesso e no progresso. As pessoas precisam de sentir que há mais na vida e de partilhar a sua dor e o seu pedido de ajuda.

É por isso que as pessoas vão tanto aos xamãs hoje em dia. Porque a nossa sociedade moderna não atende às necessidades emocionais e comunitárias dos seres humanos. Há algo no xamanismo mongol que nos leva a falar com um espírito antigo. E este espírito antigo está ligado aos nossos antepassados. É como falar com a nossa tetravó ou tetravô. Portanto, há este aspeto de ligação a uma comunidade maior. É disto que precisamos na Mongólia atual e é por isso que continuamos a recorrer a culturas ancestrais como o xamanismo.

“O Jovem Xamã” estreia esta semana nas salas de cinema portuguesas.

  • Tiago Alves e António Quintas
  • 13 Nov 2024 16:05

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