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10 Jul 2025

“O Processo do Cão” apresenta o julgamento de um cão pelo crime de ter mordido uma mulher na cara. Cosmos é o nome do cão, o tribunal vai decidir se é inocente ou culpado. A cineasta Laetitia Dosch imaginou a história de uma advogada de casos perdidos que aceita defender um cão acusado de morder e procura evitar a todo o custo que este seja condenado à morte:

O filme é inspirado numa história verdadeira. Uma advogada chamada Avril recebe no escritório um homem e o cão.

O cão tinha mordido uma mulher na cara e apresentou queixa contra o dono. Segundo a lei, um cão é tratado como uma coisa. A advogada quer conseguir provar que um cão não é uma coisa. O que é verdade, pois sabemos que um cão mexe-se, faz xixi, dorme, come, não é um objeto.

O juiz é surpreendido e entra nesta loucura de considerar que o cão não é uma coisa, mas que é alguém. Por isso, vão levar o cão a um julgamento para ser responsabilizado pelas ações que praticou. É o primeiro julgamento de um cão desde a Idade Média e isso vai enlouquecer toda a gente.

Laetitia Dosch gosta de trabalhar com animais. A ideia do filme surgiu quando fez uma peça de teatro com um cavalo em palco. No final de uma das representações ficou sensibilizada com o relato de uma advogada que tinha assistido à peça:

Uma mulher veio ter comigo e disse-me, sou advogada e defendi o dono de um cão que tinha mordido por três vezes uma mulher na cara. Disse-me que houve manifestações, uns contra, outros a favor do cão. A cidade ficou virada do avesso.

As pessoas ficaram apaixonadas por esta história que criou muitos problemas. O caso desse cão chegou até ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Ela chorava quando contou esta história.

E eu disse para mim própria, um cão não é uma coisa e nós sabemos isso. Então, o que é um cão? E se um juiz decidisse que um cão não é uma coisa, se concordasse com isso e dissesse que era preciso fazer o primeiro processo de cão para ver que responsabilidade ele tem nas ações que pratica?

Achei que era o início de uma comédia e o ponto de partida para uma reflexão interessante sobre o lugar dos animais, a nossa relação com as outras espécies em geral, ou seja, sobre a ecologia. Num tom trágico-cómico, tocava em muitos assuntos importantes para mim.

No filme, o cão é que se senta na cadeira do réu. Para tratar o tema com seriedade, Laetitia Dosch foi à procura de casos em que os donos são julgados. Falou com advogados, juízes e treinadores de cães:

Falei com donos de cães a quem isto aconteceu e também com muitos advogados. Também analisei muitos casos que envolviam mordeduras de cães e a forma como os donos foram julgados. Fiz muita pesquisa. Uma juíza ajudou-me mesmo a escrever uma determinada parte do texto do julgamento.

Descobri muitas coisas. Por exemplo, os cães são submetidos a testes para avaliar o grau de perigosidade. São-lhes dadas guloseimas, dão-lhes ração, tiram-lhes a ração, levam-nos a passear para perceber se são, ou não, perigosos.

Se tiverem uma determinada pontuação, já não podem viver connosco e vão para um abrigo, ou são eutanasiados. Aprendi muito sobre isso.

No filme “O Processo do Cão”, Cosmos é a personagem central. É um cão dócil, meigo e amigo do dono, mas mordeu três pessoas diferentes quando estas lhe mexiam na comida

O cão Cody é o ator canino que interpreta o Cosmos. Não tem raça definida, Laetitia Dosch escolheu-o por ser um cão expressivo e sensível. No Festival de Cinema de Cannes, conquistou mesmo o prémio Palm Dog:

O cão ganhou o prémio de melhor cão ator e mereceu-o porque sabe quando está a representar. Quando se diz corta, ele para.

Ele sabe quando está ou não a representar; por isso, é um ator. Tive sorte em encontrá-lo. Procurei um cão como este por toda a França e não conseguia encontrar. Ouviram-me na rádio a falar deste projeto e contactaram-me por e-mail.

Então conheci o Cody. Um cão muito bonito, alegre, manifestava muitas emoções. Foi resgatado da rua quando era cachorro. Foi adotado e treinaram-no. Também já entrou em peças de teatro. Vi logo que era com ele que eu queria trabalhar. Iniciámos uma longa viagem, ensaiámos muito juntos. O cão fazia exatamente o que estava planeado. Ele foi, talvez, o ator mais profissional do filme, em conjunto com a Anabela Moreira, é claro.

Elogios de Laetitia Dosch a Cody, o ator canino, e à atriz Anabela Moreira. Esta tem o papel da mulher mordida pelo cão. Uma imigrante portuguesa, na Suíça, que trabalha nas limpezas. A realizadora quis, no entanto, fugir a estereótipos:

Filmámos na Suíça. Quando temos uma empregada de limpeza portuguesa mordida na cara, podemos cair numa espécie de estereótipos estúpidos. Mas eu queria uma grande senhora, uma mulher com uma personalidade forte, com muita dignidade, solidão e beleza. Uma mulher com muita classe.

Tive a sorte de a Anabella Moreira ter aceitado interpretar com uma máscara. Não é fácil representar com uma máscara e é uma personagem que pouco fala.

É um pouco à imagem do Charlie Chaplin. É a verdadeira personagem feminista. Vai ter uma jornada de libertação, vai superar muitas coisas no filme.

Para a primeira longa-metragem que realiza, Laetitia Dosch traz para a narrativa personagens fora dos padrões convencionais, pessoas marginalizadas da sociedade, como é também o dono do cão Cosmos, interpretado pelo ator François Damiens. A cineasta francesa, além de dirigir, quis ter um papel no filme. É a advogada de defesa do cão:

Gosto muito dos filmes do Nanni Moretti, do Woody Allen e de séries de televisão em que a mesma pessoa escreve, realiza e interpreta a personagem principal. Pensei fazer algo do género, em que eu fosse a personagem principal do meu filme e também para falar de coisas mais íntimas sobre mim própria. Escrevi a personagem da advogada como se fosse um sósia meu.

Ela tem uma relação complicada com os homens, está a tentar encontrar o lugar a que pertence, está a tentar encontrar o caminho, encontrar o tom de voz. São coisas que me interessam e que me são próximas.

Militante ambientalista, Laetitia Dosch, assume a causa animal, defende a necessidade e a importância de definir o estatuto dos animais, que figuras são, perante a lei – seres vivos ou objetos:

Vi muitos casos e falei com pessoas destas áreas. A questão do estatuto do animal é interessante. No filme decide-se que o animal deve ser julgado como um ser humano, mas se tratássemos todos os animais como seres humanos, não comeríamos mais carne, nem peixe e não usaríamos coisas de pele.

Há muitas coisas que precisamos de mudar no nosso modo de vida. Quem vê o filme pode ficar sensibilizado e pode ser levado a pensar sobre o assunto. O meu trabalho é levantar as questões, depois as pessoas são livres de fazerem o que quiserem.

Algumas vão querer agir, outras vão esquecer-se, outras vão lembrar-se de tudo o que é divertido. São muitas as questões, mas eu só faço as perguntas, não dou as respostas. 

  • Margarida Vaz
  • 10 Jul 2025 18:55

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