18 Abr 2024
Um caso real na história da Igreja católica, trouxe de volta à competição do Festival de Cannes em 2023 o realizador italiano Marco Bellocchio que já teve vários filmes na corrida à Palma de Ouro. Numa entrevista ao Cinemax, o realizador explica o que lhe interessou nesta história que denuncia uma das muitas formas de abuso de poder da Igreja.
Passado em 1858, o “Rapto” conta a história de como o Vaticano decidiu o destino de um rapaz judeu, batizado em segredo e, por isso, retirado da família, para ser forçado à cristianização.
“É um exemplo do absurdo da fé…”
Marco Bellocchio, que teve uma educação católica, conhece bem o drama de Edgardo Mortara e a luta da família do rapaz, para conseguir a sua libertação:
“Interessava-me neste drama, a resistência dos pais, que foi diferente por parte da mãe e do pai. E também o instinto de sobrevivência do pequeno Edgardo.”
O filme reconstitui de forma rigorosa a época e os lugares da vida de Edgardo Mortara, a criança que se tornou uma obsessão para o Papa Pio IX. A decisão de raptar o miúdo gerou muitas críticas na altura, dentro e fora de Itália, mas Pio IX, estava determinado em cumprir o que, na época, eram os poderes da igreja, que funcionava acima da lei e dos governos.
“É um exemplo do absurdo da fé (…) Não tinha a ver com as ligações políticas, mas, simplesmente, se a criança tinha sido batizada, tem de ser católica. Não era possível ceder e deixá-lo ir embora. Muitos governantes na Europa sugeriram ao papa que restituísse a criança à família. Mas ele disse que não. E isto acontece nas vésperas do colapso do poder da igreja.”
O rapto de crianças para serem cristianizadas à força, era muito comum à época, quando a separação entre o Estado e a Igreja tinha contornos difusos e complexos. Hoje, diz Marco Bellocchio, vivemos tempos diferentes e uma história como esta não podia acontecer:
“O atual Papa é uma pessoa de grande abertura, que estabelece pontes e que é muito sensível à paz. Por exemplo, ele tem um discurso que procura uma solução de paz, entre a Rússia e a Ucrânia, sem se colocar de nenhum dos lados. E também no que diz respeito à imigração, ao contrário de muitos partidos políticos, ele é verdadeiramente uma voz progressista.”
Na carreira de Marco Bellocchio contam-se títulos como “Vencer”, que aborda aspetos da vida de Mussolini, ou “O Traidor” sobre o primeiro mafioso que denunciou a organização criminosa nos anos 80.
A caminho dos 85 anos, agora mais do que nunca, cada filme na vida de Bellocchio é uma etapa difícil e arriscada, mas isso não o impede de continuar a propor uma reflexão sobre as instituições e os seus impactos. Ainda assim, o realizador admite que já não tem a mesma irreverência da juventude e também que a política já não é o que mais lhe interessa filmar:
“Hoje em dia, para falar de política no cinema, tem de ser de forma catastrófica e com uma negatividade absoluta, que não me interessa. Ou então, não posso falar da política italiana. Porque atualmente em Itália não há uma força política com ideias que me possam entusiasmar a fazer qualquer coisa.”
“Rapto” é um drama que retrata um caso real, um episódio entre muitos, que marcaram o pontificado de Pio IX, um dos mais longos da história e também um dos mais polémicos, por atravessar vários períodos políticos e sociais muito conturbados.
O filme aborda um lado menos positivo da instituição Igreja, e por isso, Marco Bellocchio quis a opinião de padres que em momento algum contestaram a visão do realizador, ou tentaram justificar a atuação da Igreja e até sugeriram que tentasse falar com o atual papa. Bellocchio escreveu ao Papa Francisco, mas nunca teve resposta.