

O século de Oliveira
O CINEMAX recorda a obra do cineasta que morreu com 106 anos há uma década, a 3 de abril de 2015. Desde o primeiro até ao último filme.
No cinema português — em boa verdade, mais do que isso: na sociedade portuguesa —, instalou-se há muito tempo um vício anedótico segundo o qual seria preciso cada um de nós estar totalmente “a favor” ou totalmente “contra” os filmes de Manoel de Oliveira. É tempo de crescermos e dizer que nenhum grande criador é capaz de gerar consensos universais — por vezes, a capacidade de dividir é mesmo um reflexo do seu génio criativo.
Acima de tudo, é tempo de observarmos e compreendermos como a obra de Oliveira nos ajuda, afinal, a percorrer a própria história global do cinema. Filmou cerca de seis dezenas de filmes ao longo de mais de 80 anos e através destas obras podemos compreender a narrativa do cineasta que foi premiada e é reconhecida internacionalmente, nomeadamente com a Palma de Ouro honorária do Festival de Cannes.
Artigo criado a partir do documentário emitido na Antena 1 a 3 de abril de 2015.
O Porto: “Douro Faina Fluvial” de 1931 e “Aniki Bóbó” de 1942
“Douro Faina Fluvial” e “Aniki Bóbó” são os primeiros filmes que Oliveira rodou, com um hiato de onze anos. Obras fundadoras que revelam uma ligação umbilical à cidade do Porto.
“Douro Faina Fluvial” é um objeto contagiante que revelava dois aspetos fundamentais na obra do realizador: o gosto por experimentar e a ligação afetiva ao Porto. Nele estavam já duas componentes fulcrais do universo do cineasta: o amor pela cidade, as suas personagens e os seus lugares; e o gosto pelo cinema como espaço experimental.
Costuma dizer-se que “Aniki Bóbó” é o filme “neo-realista” de Oliveira, mas convém não esquecer que o neo-realismo italiano, de facto, surgiu anos depois. Teresinha, Carlinhos e Eduardinho são os rostos e vozes das crianças de novo nos cenários emblemáticos do Porto. Com produção de António Lopes Ribeiro, Oliveira explorava os caminhos de um lirismo muito particular, ao mesmo tempo, ingénuo nos pressupostos e sofisticado na linguagem.
Documentário: “O Pintor e a Cidade” de 1956 e “Acto da Primavera” de 1963
A oposição tradicional entre “documentário” e “ficção” também se aplica ao universo de Oliveira, mas importa sublinhar que é escassa para dar conta da sua riqueza. Que é como quem diz: para Oliveira, documentar é sempre uma forma de ficcionar, de imaginar e reimaginar os limites das suas fronteiras.
“O Pintor e a Cidade”, a sua primeira e magnífica experiência com a película a cores, é um exemplo esclarecedor: o Porto visto e revisto através das aguarelas do Pintor António Cruz — sem esquecer que, neste caso, o diretor de fotografia foi o próprio Manoel de Oliveira.
Ao aspeto documental e ficcional do cinema de Oliveira junta-se o lado etnográfico e filosófico numa obra essencial de 1963, “O Acto da Primavera”.
Filme singularíssimo em toda a história do cinema português: uma representação da Paixão de Cristo pelos habitantes da aldeia da Curalha, de acordo com um texto herdado do século XVI. Em termos históricos, uma obra na linha da frente do cinema europeu.
Teatro e Literatura: “O Passado e o Presente” de 1972 e “Francisca” de 1981
É habitual ouvir dizer que as componentes teatrais do cinema de Oliveira lhe limitam as qualidades concretas. Dois filmes desmentem o lugar-comum e confirmam que a teatralidade não é um recurso formal, mas sim um tema.
A inspiração no teatro e no romance decorre do primado da palavra, mas também do modo como a palavra expõe uma dimensão visceral da existência humana. Ou seja: tudo é teatro, vivemos entre as máscaras que usamos e os rostos que assumimos, tentando encontrar a transparência da alma — “a alma, esse vício”, frase dita por Francisca no romance “Fanny Owen”, de Agustina Bessa-Luís, que se transformou numa espécie de emblema, ético e estético, do cinema de Oliveira.
Em plena agonia do Estado Novo, em 1972, “O Passado e o Presente” rompeu com uma certa austeridade. Oliveira filmou-o numa importante viragem da produção portuguesa, com o aparecimento do Centro Português de Cinema e o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi uma viragem também para o realizador austero que experimenta pela primeira vez a comédia.
Os velhos do Restelo que o nosso cinema sempre teve acharam que era o fim artístico de Oliveira e, num certo sentido, também o fim do cinema de autor à portuguesa. Décadas passadas, vale a pena rir um pouco. Até porque o filme, baseado na peça homónima de Vicente Sanches, é isso mesmo: uma genuína comédia onde estão em cena os fantasmas conjugais e as aparências sociais.
Ao adaptar “Fanny Owen”, de Agustina Bessa-Luís, no seu filme “Francisca” (1981), Oliveira ilustra de forma exuberante algo que, afinal, está disseminado pelos seus três filmes anteriores: “O Passado e o Presente” (1972) , segundo Vicente Sanches, “Benilde ou a Virgem Mãe” (1975), a partir da peça de José Régio, e “Amor de Perdição” (1979), o clássico de Camilo Castelo Branco. Por alguma razão, estes filmes acabaram por ficar conhecidos como a tetralogia dos “amores frustrados”.
Teatro e Canto: “Os Canibais” de 1988
No cinema de Manoel de Oliveira, o teatro também se canta. O canto também pode ser uma maneira de expor os amores e desamores das personagens. Ou ainda: o cinema dá-se bem com a ópera. E não deixa de ser curioso que “Os Canibais” — feito a partir de uma obra de Álvaro Carvalhal, com música composta por João Paes — seja o filme que Oliveira faz em 1988, logo depois da internacionalização da sua produção, em 1986, com “O Meu Caso”.
Dir-se-ia que, mais do que nunca, Oliveira era um cineasta disponível para todos os registos, desfrutando e celebrando a sua alegria criativa — cantando, se fosse caso disso.
A História: “Non ou a Vã Glória de Mandar” de 1990
Na obra de Manoel de Oliveira, o 25 de abril de 1974, emerge como um momento de energia e perplexidade, de utopia e de hesitação. Afinal de contas, o que significa isso de ser português?
As palavras de El-Rei D. Sebastião antes da fatídica Batalha de Alcácer-Quibir, a 4 de agosto de 1578, são o espelho da contradição mais antiga da história colectiva portuguesa: por um lado, uma vontade utópica de oferecer novos mundos ao mundo; por outro lado, em alguns momentos decisivos, a entrega dramática a um destino fatídico.
Em “Non Ou a Vã Glória de Mandar”, Oliveira encenou Alcácer-Quibir. Mas não apenas a batalha, antes uma teia de referências históricas que parte do Portugal pós-25 de Abril, um Portugal reconduzido às suas fronteiras originais. Do ponto de vista temático, é um objeto que faz a síntese da visão de Oliveira sobre as convulsões e contradições da história de Portugal.
Feminino: “Vale Abraão” de 1993
Há uma corrente de temas, sentimentos e obsessões que liga a obra de Manoel de Oliveira com a escrita de Agustina Bessa Luís. Foram sete filmes feitos a partir de textos da escritora e as mulheres mais fortes do cinema de Oliveira são figuras saídas da inspiração romanesca de Agustina. É o caso de Ema, interpretada por Leonor Silveira em “Vale Abraão” que foi, sem dúvida, um dos títulos decisivos na consagração internacional, de Oliveira — sobretudo após a sua receção apoteótica na Quinzena dos Realizadores, em Cannes.
Internacionalização: “O Convento” de 1995 e “Viagem ao Princípio do Mundo” de 1997
No processo de internacionalização do cinema de Oliveira há atores que emergem com particular evidência. Podemos nomear quatro: Michel Piccoli, Catherine Deneuve, John Malkovich e Marcello Mastroianni.
A projeção internacional de Oliveira acontece a partir do Festival de Cannes. Num primeiro momento com o impacto de “Francisca”, em 1981. Mas os filmes que simbolizam melhor esse reconhecimento global foram rodados em 1995 e 1997, com duas das grandes estrelas do cinema europeu: Catherine Deneuve e Marcello Mastroianni.
Oliveira internacionaliza-se também internamente, de tal modo que o bailado das línguas — português, francês, inglês — passa a constituir uma espécie de sub-tema, perversamente incrustado no corpo narrativo do próprio filme.
Aconteceu em “O Convento” com Deneuve e John Malkovich. Voltou a acontecer dois anos mais tarde, naquele que seria o derradeiro filme de Marcello Mastroianni.
Memória: “Porto da Minha Infância” de 2001
“Porto da Minha Infância” pode ser uma excelente entrada no universo de Oliveira, sobretudo para quem nunca tenha visto uma única das suas obras. É uma evocação sentida, na primeira pessoa.
A voz de Manoel de Oliveira contempla uma imagem da sua velha casa, agora destruída. A voz da sua mulher, D. Maria Isabel, canta a mágoa infinita da saudade. Ambos transportam uma tristeza que, afinal, se faz alegria — alegria do cinema, alegria de refazer as memórias, reinventadas através da magia própria de um filme.
Como o título diz, é mais uma deambulação pela história da cidade do Porto no mais descritivo dos documentários que consegue, sem esforço nem contradição, possuir as intensidades, e também o mistério, de uma viagem através dos labirintos da alma humana.
Humor e irrealismo: “O Estranho Caso de Angélica” de 2010
Oliveira foi um cineasta vital até ao fim. Preservou o humor e a capacidade de surpreender. Pontualmente, com uma ligeireza divertida.
“O Estranho Caso de Angélica” foi feito em 2010. Contas redondas, cerca de meio século depois de Oliveira ter escrito o respetivo argumento. Não por acaso, é o mais preciso e obsessivo dos seus filmes, também o mais ligeiro e estranhamente divertido.
No centro está um fotógrafo, interpretado pelo neto do cineasta, Ricardo Trêpa. Uma noite, chamado para fotografar uma defunta de nome Angélica, dispara a máquina fotográfica sobre o corpo inerte da morta que abre os olhos e sorri. Não é um filme de terror. Mas é um filme sobre o medo inerente ao amor e, através disso, sobre o modo como a pulsão amorosa, de tão cristalina e carnal, pertence já ao mundo dos fantasmas e às suas estranhas cumplicidades.
Para Manoel de Oliveira, o cinema sempre foi isso: uma máquina de produzir maravilhas em que a evidência coabita com o mistério, não havendo diferença alguma entre a vida vivida e o teatro da vida. Sim, sim, o teatro, porque conforme as suas palavras irónicas, “o cinema é o registo audiovisual do teatro”.