Ana Rocha de Sousa com o Leão de Ouro do futuro no festival de Veneza (DR)

28 Dez 2020 23:37
Como é habitual, fazemos o balanço do ano recordando os melhores filmes do ponto de vista artistico, mas também aqueles que obtiveram reconhecimento do publico. 

Durante uma boa parte do ano os cinemas estiveram encerrados. As restrições e o confinamento prejudicaram imenso a distribuição e a programação regular do circuito de exibição de cinema — as quebras de audiência nas salas portuguesas, em relação a 2019, rondam os 75%.

Vimos menos filmes, fomos menos à sala de cinema, mas não tivemos dificuldade em encontrar ficções estimulantes, duas obras portuguesas relevantes, um musical e um documentário poderoso.

Escolhemos, como é hábito, filmes atuais que arriscam, pensam o mundo, refletem sobre a sociedade, filmes que nos tocam e emocionam.


LISTEN, Ana Rocha de Sousa

Neste balanço de 2020, quando lembramos o filme LISTEN, de Ana Rocha de Sousa, como um dos momentos marcantes do ano cinematográfico, importa referir que o seu impacto começou com os prémios que ganhou no Festival de Veneza.

Por isso mesmo, vale a pena sublinhar que cada filme português, em particular — e a produção portuguesa, em geral — nada têm a perder com a construção de uma relação ágil e inventiva com os circuitos comerciais e culturais do estrangeiro. Ao filme de Ana Rocha de Sousa está ligado, precisamente, Rodrigo Areias, um dos produtores portugueses que tem trabalhado para diversificar toda essa dinâmica.
O exemplo de LISTEN é tanto mais significativo quanto estamos perante um filme que, através da sua linguagem específica, mantém uma relação directa com toda uma nobre tradição realista, em grande parte enraizada no cinema inglês.
Trata-se, aliás, do retrato dramático de uma família portuguesa a viver em Inglaterra. A sua situação revela-se tanto mais frágil quanto depara com mecanismos da segurança social em que os valores humanos são regularmente postos em causa pela burocracia — a provar, afinal, que o realismo não é uma moda, mas uma visão do mundo.
O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, João Botelho

Sobre a produção cinematográfica portuguesa, há quem goste de repetir uma ideia simplista segundo a qual muitos filmes dependem de uma colagem mecânica, mais ou menos preguiçosa, às suas fontes literárias — em particular aos romances que adaptam.

Enfim, não sejamos maniqueístas e lembremos apenas que há de tudo, até porque, como lembrava o velho Hitchcock, por vezes um mau romance pode dar origem a um belo filme.
No caso de O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, temos um magnífico romance e um filme à sua altura. João Botelho, o realizador, já adaptou, por exemplo, Eça de Queiroz, Almeida Garrett e Fernando Pessoa. Este ano regressou a Pessoa, mas através de José Saramago — isto é, justamente, adaptando O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS, romance publicado em 1984.
O resultado tem tanto de crónica histórica como de deambulação filosófica, afinal relançando uma interrogação que vem da obra de Pessoa e, como é óbvio, ecoa na escrita de Saramago. Ou seja: ser ou não ser português, eis a questão.

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS é, por isso, um objecto de vocação universal, sem nunca perder a sua dimensão visceralmente portuguesa.
O PARAÍSO, PROVAVELMENTE, Elia Suleiman

Aqui está um nome que, felizmente, continua a marcar presença no mercado cinematográfico português: Elia Suleiman. Ele é um cineasta que trabalha, incessantemente, apaixonadamente, sobre a sua identidade suspensa — dito de outro modo: Suleiman, cidadão da Palestina, apresenta-se como alguém que pertence a um povo, mas não a um país.

O seu filme O PARAÍSO, PROVAVELMENTE é uma bela encarnação dessa situação, tanto mais tocante quanto evita o esquematismo de um discurso mais ou menos panfletário.

O PARAÍSO, PROVAVELMENTE tem mesmo qualquer coisa de comédia do absurdo, centrando-se nas aventuras e desventuras de um realizador que tenta angariar meios para concretizar um projecto cinematográfico, viajando por várias cidades de todo o mundo — e como é óbvio não tem nada de acidental que esse cineasta seja interpretado pelo próprio Suleiman, confirmando que o seu cinema é também uma espécie de autobiografia paródica.
O PARAÍSO, PROVAVELMENTE esteve em Cannes, 2019, onde arrebatou o Prémio FIPRESCI, atribuído pela imprensa internacional; entre nós, chegou às salas este ano, no mês de Julho, quer dizer, foi um dos grandes momentos cinéfilos do tempo de pandemia.
PARA SAMA, Waad al-Kateab e Edward Watts
Ao longo da última década, a produção documental tornou-se, não apenas mais enérgica, mas também mais visível: para lá dos circuitos especializados, os documentários passaram a ser uma presença regular nas salas comerciais.
Esta ano, o filme PARA SAMA constituiu um dos casos mais admiráveis dessa presença, trazendo-nos um testemunho dramático da guerra na Síria e, em particular, dos terríveis combates que tiveram lugar na cidade de Aleppo.
Assim, somos confrontados com a experiência da realizadora, Waad Al-Kateab, uma jornalista que se mudou para Aleppo, em 2009, contava 18 anos, a fim de frequentar um curso de Economia.
Depois da eclosão da guerra civil, em 2011, Waad Al-Kateab começou a assinar reportagens para um canal da televisão britânica, ao mesmo tempo que, com a colaboração do documentarista inglês Edward Watts, ia registando o seu dia a dia, marcado por um acontecimento muito especial: o nascimento da filha, de nome Sama.
PARA SAMA é o balanço dessa experiência, um poderoso documento histórico e também uma delicada crónica intimista.

RETRATO DE UMA RAPARIGA EM CHAMAS, Céline Sciamma

Ao longo da última década, na dupla condição de argumentista e realizadora, a francesa Céline Sciamma tem-se afirmado como uma talentosa retratista da intimidade humana. Mais exactamente: das relações que não cabem numa representação tradicional do masculino e do feminino, abrindo para novos desejos, novas ideias, outras dimensões da pulsão amorosa.

RETRATO DE UMA RAPARIGA EM CHAMAS é um caso exemplar do seu trabalho, aliás consagrado com duas distinções no Festival de Cannes de 2019: uma na selecção oficial, melhor argumento; outra nos prémios paralelos, com a chamada Palma Queer.
Os cenários são de finais do século XVIII, mas as ressonâncias simbólicas são intemporais. Esta é a história de Marianne, uma pintora que recebe uma encomenda que a vai levar até às paisagens da Bretanha para fazer o retrato de Heloïse, uma jovem que, contra sua vontade, se vai casar com um nobre de Milão.
Da convivência de Marianne e Heloïse nasce uma paixão capaz de abalar, não apenas as regras sociais, mas a própria percepção que cada uma delas tem da sua existência.
Com delicadeza e sensibilidade, o filme é também uma celebração do labor das actrizes prinicipais: Noémie Merlant e Adèle Haenel — este é, de facto, um cinema, não de marionetas digitais, mas de corpos vivos e vibrantes.

AMERICAN UTOPIA, Spike Lee

Neste nosso balanço do ano, não poderia faltar aquele que foi um verdadeiro presente natalício que o cinema nos ofereceu. Um filme-concerto tendo por base o espectáculo da Broadway AMERICAN UTOPIA, de David Byrne, filmado por Spike Lee.

Aliás, mais do que um filme-concerto, AMERICAN UTOPIA é uma verdadeira cerimónia, cerebral e sensorial, explorando os temas e interrogações da identidade americana.

Estamos perante uma genuína experiência de palco, com o seu quê de celebração ritual, cruzando pensamentos, afectos e cumplicidades: David Byrne e os seus músicos montam uma exuberante peça teatral, musical e musicada; Spike Lee filma tudo isso como quem reinventa a frondosa tradição, justamente, do cinema musical americano.
Num tempo de crise do mercado, crise de saúde, crise social, a utopia de David Byrne veio dizer-nos que a alegria do espectáculo resiste — foi uma mensagem preciosa e um dos grandes filmes de 2020.


DA 5 BLOODS – IRMÃOS DE ARMAS, Spike Lee

2020 foi um ano cinematográfico em que, por todas as razões (incluindo, claro, os efeitos da pandemia) se assistiu ao agudizar de uma tensão de uma só vez cultural e comercial. Assim, mais do que nunca, a defesa dos circuitos tradicionais, isto é, das salas escuras, foi uma prioridade absoluta; ao mesmo tempo, por outro lado, as plataformas de streaming marcaram o ano com alguns títulos realmente excepcionais.

Assim aconteceu na Netflix com DA 5 BLOODS, entre nós intitulado IRMÃOS DE ARMAS, um regresso a um tema visceral do cinema americano — as memórias da guerra do Vietname — com assinatura de Spike Lee.
Não é exactamente um filme de guerra, mas sim uma aventura trágica em que as respectivas memórias são vividas através da experiência de um grupo de afro-americanos que, várias décadas depois do fim da guerra, regressam ao Vietname apostados em recuperar uma fortuna em ouro que terá ficado enterrada, algures, numa zona de combate.
Spike Lee filma tudo isso com a agilidade e a inteligência de quem sabe cruzar a crónica histórica com a reflexão política e a especulação filosófica. Ao mesmo tempo, DA 5 BLOODS deixou-nos uma memória muito especial de um actor que viria a falecer em Agosto de 2020, poucas semanas depois do lançamento do filme — falamos, claro, do muito talentoso Chadwick Boseman.
J’ACCUSE – O OFICIAL E O ESPIÃO, Roman Polanski
Felizmente, ainda temos filmes que não desistem de lidar com a complexidade de qualquer herança histórica, isto é, que tratam personagens e situações sem ceder à ostentação técnica ou a um qualquer heroísmo maniqueísta.

Roman Polanski trouxe-nos este ano um belíssimo exemplo dessa postura, de uma só vez histórica, estética e simbólica.
J’ACCUSE – O OFICIAL E O ESPIÃO relembra o caso Dreyfus, em França, em finais do século XIX, um processo de difamação, julgamento e prisão de um oficial do exército francês que teve como base um anti-semitismo ajudado e reforçado pela cumplicidade dos próprios tribunais — estamos perante um trabalho minucioso de análise de uma época complexa, cujos ecos no nosso presente são necessariamente fascinantes e, sobretudo, perturbantes.
1917, Sam Mendes

Por mais estranho que isso possa parecer, o filme de Sam Mendes, 1917, vai também ficar na história não apenas por causa da sua excelência cinematográfica.

Foi, de facto, um dos derradeiros grandes espectáculos — para mais, passando nos ecrãs gigantes das salas IMAX — antes da pandemia. A lembrar-nos que fazer cinema grandioso não é o mesmo que acumular efeitos especiais disparatados ou heróis que só sabem emitir grunhidos.
1917 é um admirável retorno ao modelo clássico do “filme-de-guerra”, agora revisto e reinventado através de um modo de filmagem em continuidade, realmente só possível através dos mais modernos recursos digitais — uma proeza técnica que é, acima de tudo, uma celebração humanista.
TENET, Christopher Nolan

Não é por acaso que o realizador Christopher Nolan termina o ano de 2020 a discutir publicamente o facto de o seu estúdio, a Warner Bros., ter anunciado que, pelo menos nos Estados Unidos, vai colocar as suas produções de 2021 ao mesmo tempo nas salas e na plataforma de streaming HBO MAX.

Christopher Nolan protesta contra tal opção. E porquê? A resposta pode ser dada através de TENET, o filme de Nolan, produzido pela Warner, precisamente, que aguardou vários meses, mas não surgiu directamente para os consumos online — nada disso: foi o único ‘blockbuster’ do Verão que teve estreia no seu lugar de eleição, isto é, a sala escura.
TENET talvez se possa definir como uma clássica viagem no tempo, mas encenada à maneira de uma também clássica intriga de espionagem — tudo isso com a ligeireza e a elegância de um musical.
O filme consegue a proeza de reavivar o fascínio das imagens gigantes e dos sons envolventes sem ceder à monotonia e à mediocridade que se instalou no universo dos super-heróis: Christopher Nolan tem toda a razão ao defender as salas de cinema e os poderes do grande ecrã — quem viu TENET numa sala IMAX sabe isso muitíssimo bem.

  • João Lopes c/ Tiago Alves
  • 28 Dez 2020 23:37

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