23 Fev 2024
O filme ‘’Quatro Filhas’’ centra-se no drama da tunisina Olfa Hamrouni, mãe de quatro filhas. Em 2016, Olfa despertou o interesse público ao denunciar a situação de Ghofran e Rahma, duas filhas adolescentes, que fugiram para o autoproclamado califado do Daesh, na Líbia.
A história de mulheres no Daesh e a radicalização islâmica de jovens adolescentes, despertou o interesse de Kaouther Ben Hania, realizadora natural da Tunísia.
“De uma forma geral, o que me atraiu nesta história foi o facto de se tratar de mulheres pouco convencionais. Porque quando falamos do Daesh, pensamos sempre em homens. Aqui, são mulheres e isso fascinou-me. Como é que uma mulher, uma jovem de 15 ou 16 anos, que até é bastante bonita, é seduzida pela morte e esta organização. Foi este o impulso inicial para fazer este filme. Tentar perceber o porquê.”
Kaouther Ben Hania teve conhecimento do caso em 2016, quando estava na Tunísia e ouviu na rádio o relato de Olfa. Sentiu que era importante contar a história no cinema. Encontrou-se com esta mãe revoltada que pede ajuda para trazer as filhas de volta a casa.
“Quanto mais pobre se é, mais problemas se enfrentam. A pobreza afeta especialmente as mulheres…”
“Quando ouvi as entrevistas de Olfa, disse para mim própria que talvez a história desta mulher pudesse dar um filme. Entrei em contacto com ela e foi assim que tudo começou. Inicialmente queria fazer um documentário clássico, mas rapidamente percebi que não era o melhor método, porque a história é muito complexa. Falei com Olfa e com as duas filhas mais novas. A certa altura disse-lhes que talvez tivesse de abandonar o projeto.”
Só após ter realizado ‘’O Homem Que Vendeu a Sua Pele’’, é que a cineasta se dedicou por inteiro a ‘’Quatro Filhas’’.
“Pensei que, para compreender o que se tinha passado nesta família, tinha de voltar ao passado de Olfa. E para regressar ao passado, tive a ideia de trazer atrizes dirigidas pelas personagens reais, para evocar esse passado e, sobretudo, para o analisar e refletir sobre ele.”
‘’Quatro Filhas’’ mistura o documentário e a ficção. Olfa e as filhas mais novas, que ainda vivem com ela, relatam momentos da vida, partilham memórias, recordam as irmãs. As filhas mais velhas que fugiram para se juntarem ao Estado Islâmico na Líbia são representadas por atrizes. Esta foi a solução encontrada pela realizadora Kaouther Ben Hania para evocar o passado.
“Comecei este filme em 2016, mas grande parte da rodagem e conclusão de ‘’Quatro Filhas’’ aconteceu em 2021. Demorei cinco anos a fazer o filme. E durante esses cinco anos, tornei-me mais próxima de Olfa e das filhas. Eu sabia quase tudo sobre as vidas delas. Elas contaram-me várias vezes o que tinham vivido. Assim, quando cheguei à rodagem, já tinha uma ideia muito sólida daquilo pelo que tinham passado. A ideia era filmar uma memória por dia. Por exemplo, num dia filmámos a noite de núpcias do Olfa. Tenho os atores e peço a Olfa que os dirija, que lhes diga o que têm de fazer. Depois começo a filmar. Não sei o que vai acontecer. Nesta cena, Olfa de repente lembra-se da presença da irmã, que eu desconhecia. Foi preciso acrescentar esse momento. Foi assim que aconteceu.”
As filmagens de ‘’Quatro Filhas’’ foram feitas em Tunes, no Hotel Paris, um local onde Kaouther Ben Hania encontrou um espaço que recria uma casa tunisina.
“É um hotel muito antigo que tem várias histórias para contar. Ao longo dos anos transformou-se num hotel barato. Foi fechado para confinamento. Tem um estilo tunisino muito popular, como se fosse uma casa. Por isso, concentrámos tudo naquele lugar, passando de um quarto para outro, para manter a atmosfera íntima do filme.”
As duas filhas mais velhas de Olfa foram condenadas e estão detidas numa prisão na Líbia. A extradição para a Tunísia ainda não aconteceu, refere a realizadora Kaouther Ben Hania.
“A Líbia condenou as duas filhas mais velhas de Olfa e ordenou que fossem transferidas para a Tunísia. Legalmente, a Tunísia tem de as recuperar, refazer o julgamento e ver se são ou não culpadas. Mas o governo da Tunísia está a olhar para o lado, não quer ter esse trabalho, e assim elas continuam detidas na Líbia.”
Quando de juntou ao movimento islâmico, uma das jovens teve uma bebé, uma menina que também está na prisão. A realizadora Kaouther Ben Hania explica que está a ser exercida pressão junto do governo da Tunísia para repatriar a neta de Olfa, detida na prisão libanesa, mas o processo é muito lento.
“Quando se faz um filme, não se espera que tenha este tipo de impacto, mas é ótimo quando se torna numa ferramenta pedagógica.”
“Esta questão é um verdadeiro quebra-cabeças. Para o governo, o ideal é que elas fiquem na prisão na Líbia, porque trazê-las para a Tunísia tem muitas implicações: um julgamento, encontrar provas e decidir destino a dar-lhes. É muito complicado.”
Estes problemas acrescentam ao documentário um objetivo político e humanista.
“Através do filme, estamos a tentar pressionar o governo, pelo menos para salvar a neta de Olfa que está na prisão com a mãe. Estamos a tentar exercer pressão. Tenho falado com o Ministério dos Direitos da Mulher e da Criança. Existe uma comissão interministerial, porque trazê-las para a Tunísia envolve muitos ministérios e o diálogo com a Líbia. Há uma comissão a tratar deste assunto, que em situações anteriores já repatriou algumas mulheres e os filhos. Mas, do ponto de vista burocrático, é muito lento. Estamos a exercer pressão e vamos ver o que acontece.”
A realizadora Kaouther Ben Hania reconhece que a condição de ser mulher associada à pobreza agrava a situação de Olfa.
“Penso que é difícil para as mulheres, quer seja na Tunísia, quer seja em Portugal. Há, também, o fator social, ou seja, é mais fácil quando se tem uma família estável. Pode depender do país, mas, também, depende muito da classe social. A Olfa e as suas filhas vêm de um meio muito pobre. Quanto mais pobre se é, mais problemas se enfrentam. A pobreza afeta especialmente as mulheres e Olfa é uma mãe solteira, tem de ir trabalhar para a Líbia para alimentar as filhas, tem de as educar, tem de as proteger. Tem de assumir muitas responsabilidades, o que torna a sua vida ainda mais complicada.”
Durante a realização de ‘’Quatro Filhas’, a cineasta Kaouther Ben Hania sentiu que em alguns momentos Olfa e a família conseguiam lidar com a dor e a revolta através do humor.
“Conheci a Olfa quando ela era entrevistada em programas de televisão. Ela tem um dom, sabe como contar histórias e as suas filhas, também. Não creio que as câmaras a impressionem. O mais importante para ela é fazer ouvir a sua voz. Por exemplo, na conferência de imprensa em Cannes, esteve à vontade e a única coisa importante para ela foi falar da neta. Olfa e as filhas são muito engraçadas. Penso que o humor as ajuda muito a ultrapassar estes problemas e tragédias. Elas são engraçadas, apesar da dor. Quando estou com elas, não consigo parar de rir. Acho que é, também, uma forma de se manterem dignas e fortes.”
‘’Quatro Filhas’’ estreou no ano passado na Tunísia, e Kaouther Ben Hania sente orgulho quando o filme é projetado com carácter pedagógico, como exemplo defesa dos direitos das mulheres e das crianças.
“Olfa mudou muito, mesmo a sua relação com as filhas mais novas que vemos no filme. Não sei se os filmes mudam as coisas. Na Tunísia foi lançado em setembro passado e está a ser utilizado pela sociedade civil e pelo governo para combater o abuso de crianças. Quando se faz um filme, não se espera que tenha este tipo de impacto, mas é ótimo quando se torna numa ferramenta pedagógica.”
‘’Quatro Filhas’’ foi considerado o melhor documentário nos prémios Lumière, está nomeado para o César e para o Óscar de melhor documentário. O filme, enquanto ficção documental, acompanha a vida de uma família tunisina confrontada com a radicalização de duas jovens cativadas pelo Estado Islâmico.