3 Out 2020 0:40
No ciclo de sete títulos da filmografia de Akira Kurosawa (apresentado pela Medeia Filmes), o reencontro com "Viver" (1952) merece um destaque muito especial.
Desde logo, porque a sua história íntima de um velho empregado de escritório, em Tóquio, que vem a saber que sofre de uma doença terminal contraria a imagem convencional de Kurosawa como um "gestor" de épicos sobre conflitos de samurais; depois, porque "Viver", ainda que conhecido em Portugal (passou na Cinemateca, por exemplo), nunca foi estreado nas salas do circuito comercial.
"Viver" permite-nos também corrigir a ideia de um Kurosawa apenas ligado a actores com a aura mitológica de "guerreiros", como foi o caso de Toshiro Mifune (brilhante, não é isso que está em causa). Na verdade, na sua singela intensidade psicológica, filmes como este permitem-nos reencontrar outro nome lendário do cinema japonês, Takashi Shimura, por certo menos conhecido das plateias ocidentais, mas não de menor talento.
Nestes tempos em que, nos mais variados contextos, temos assistido a uma reafirmação dos valores realistas, "Viver", primorosamente fotografado a preto e branco pelo mestre Asakazu Nakai, é também a prova cabal da perenidade de tais valores.
Kurosawa consegue retratar a sua personagem central através de infinitas nuances emocionais, sem nunca deixar de coleccionar sinais mais ou menos discretos, mas muito reveladores, da reconversão da sociedade japonesa no pós-Segunda Guerra Mundial. Enfim, um filme cuja inscrição no seu tempo não anula, bem pelo contrário, a sua ressonância no nosso presente.