18 Jan 2024
A realizadora portuguesa Marta Pessoa pede uma reflexão para “descodificar os temas de discurso colonial que ainda persistem” na sociedade e o seu contributo é o filme “Rosinha e outros bichos do mato”, que se estreia na quinta-feira.
“Rosinha e outros bichos do mato” é um filme-ensaio que parte de uma pesquisa em arquivos sobre a primeira Exposição Colonial Portuguesa, realizada em 1934 no Palácio de Cristal, no Porto.
“Aquela exposição era uma lição de colonialismo para os portugueses aprenderem coisas sobre o império e para lhes dizer que era assim que deviam olhar para os outros, com aquela ideia de superioridade, de hierarquia, quem é que domina”, afirmou a realizadora, em entrevista à agência Lusa.
Naquela iniciativa de propaganda do Estado Novo surgem retratados os povos dos territórios colonizados por Portugal e Marta Pessoa recorda que nos jardins do Palácio de Cristal foi montado “um zoo humano”, com reprodução de “aldeias dos indígenas”.
Uma das pessoas presentes na exposição foi uma jovem mulher guineense, do grupo étnico balanta, a quem chamaram Rosinha e cuja identidade e história Marta Pessoa tentou descobrir.
“A Rosinha veio com este estatuto de mulher para ser olhada. Sabe-se muito pouco sobre ela, mas está em todo o lado, a figura dela. Usada para publicidades, para a propaganda, para capas de revistas, muitas vezes nua. (…) Era aquela ideia da mulher disponível, o corpo, a erotização, uma espécie de grande metáfora do império masculino, a África feminina, um olhar completamente violento e chocante”, afirmou Marta Pessoa.
Enquanto desvendam fotografias, recortes de imprensa, imagens de arquivo de 1934, Marta Pessoa e a argumentista e produtora Rita Palma surgem no filme em diálogo, levantando questões sobre o paradeiro de Rosinha, sobre o que representou aquela exposição colonial, o que foi a propaganda do Estado Novo sobre o país, sobre racismo e o que ecoa disto tudo ainda hoje.
“O filme vale por si e não precisa de discurso, mas toda a conversa que criar será sempre positiva.”
Aliás, Marta Pessoa arranca com o documentário questionando-se com a frase “Portugal não é um país racista”.
“Comecei a ouvir muito a expressão de que Portugal não é um país racista, que o nosso colonialismo não foi assim tão mau, tinha aspetos positivos, era mais suave. E eu não posso discordar mais disso e achei que era o momento para me lançar e começar a refletir e a mergulhar em alguns materiais que tinha pesquisado“, contou.
Marta Pessoa, a poucos meses de completar 50 anos, como a revolução de 25 de Abril de 1974, tem-se dedicado ao documentário de arquivo para refletir sobre o país.
“Eu tenho andado a fazer filmes sobre a guerra colonial, a perspetiva das mulheres, as pessoas perseguidas pela polícia política, sobre as mulheres que queriam ser independentes, sobre a invisibilidade das mulheres, sobre a Maria Lamas, a refletir sobre as questões do 25 de abril e a ‘Rosinha’ vai no mesmo sentido”, elencou.
Para Marta Pessoa, é preciso uma reflexão, “é preciso discutir isto, começar a descodificar os temas de discurso colonial que ainda persiste, o que ainda existe, o que é feito, o que nos está a travar”.
“O filme vale por si e não precisa de discurso, mas toda a conversa que criar será sempre positiva”, afirmou.
Marta Pessoa reconhece que “houve um ensinamento do racismo” a que ela não escapou. “Eu, que nasci em 1974 e cresci já em democracia, ensinaram-me a ser racista, ensinaram-me ainda aquele discurso, ensinaram-me o ‘nós’ e o ‘eles’, quem é um lado e o outro, nós e os outros. Temos essa herança dessa lição”, disse.
Marta Pessoa justifica ainda a violência de algumas imagens do documentário, em particular pela representação dos africanos e exposição de nudez, por exemplo, de Rosinha.
“Se eu estava a dizer que o nosso colonialismo foi violento, que houve muita violência que ainda agora tem as suas repercussões, ao não mostrar (a nudez) eu estava a proteger aqueles homens, a ditadura, os fascistas, quem as produziu, porque estava a dizer que isto não foi a assim, não estava a mostrar a coisa em todo o seu horror e violência”, disse.
E exclamou: “Quando se diz que o racismo é uma coisa de Estado, é o Estado português, não! Somos nós também nas nossas atitudes e é isto que é preciso combater. É uma coisa eu faço há não sei quanto tempo e achei que era a altura de por isto em filme e pareceu-me óbvio”.
Produzido pela Três Vinténs, “Rosinha e outros bichos do mato” tem estreia assegurada em Lisboa, Porto e Coimbra e em algumas sessões haverá conversas no final com a realizadora.