22 Mai 2017 0:36
Sou dos espectadores totalmente seduzidos pelo novo filme de Michael Haneke: "Happy End" (competição de Cannes). Apesar disso (ou por causa disso mesmo), parece-me também evidente que não é, nunca será, um objecto para gerar unanimidades ou unanimismos, de tal modo lida com questões contemporâneas que, de facto, surgem bem distantes dos muitos clichés mediáticos que as contaminam.
Nesse aspecto, não terá sido muito feliz a apresentação do filme como um drama sobre uma família que vive no norte de França, na zona de Calais, "próximo do campo de refugiados" que ficou conhecido como a selva. De facto, os refugiados surgem mais como um elemento que assombra as acções, não como um "tema"… Em boa verdade, encontramos um dispositivo presente em muitos momentos da filmografia de Haneke: uma família burguesa confrontada com os seus próprios fantasmas.
É uma família em que tudo parece correr bem: o negócio de construções é gerido por Anne (Isabelle Huppert), já que o envelhecimento do seu pai (Jean-Louis Trintignant) parece afastá-lo cada vez mais de tais tarefas. As coisas começam a revelar-se menos transparentes e harmoniosas através de vários factores que rasgam a estabilidade do quotidiano, mas é a personagem de Eve (Fantine Harduin), filha de Thomas (Mathieu Kassovitz), que irá funcionar como cruel revelador.
Simplificando (e também evitando revelar pormenores muito específicos da intriga), digamos que tudo e todos se apresentam marcados por uma gélida pulsão de morte, a ponto de "Happy End" ir instalando uma dúvida metódica — será que ainda há alguém que consiga, realmente, ver os outros (incluindo os refugiados)? Ou ainda. o que é que (não) passa entre os seres humanos?
Escusado será dizer que Haneke se movimenta num universo dramático que provém, em linha directa, de vários dos seus filmes anteriores, com destaque para "Nada a Esconder" (2005). Em todo o caso, o seu trabalho continua a depurar-se, de tal modo que "Happy End" vai evoluindo de uma colecção de fragmentos insólitos até um bloco narrativo em que todos os elementos se encontram ligados por uma espécie de pânico radical, sem sentido detectável e, no limite, sem sujeito — é um filme muito nosso, quer dizer, da Europa em que vivemos ou julgamos viver.