Todd Haynes e Cate Blanchett — reencontrando a herança de Douglas Sirk


joao lopes
5 Fev 2016 22:53

Na história literária das relações entre pessoas do mesmo sexo, o romance "The Price of Salt", de Patricia Highsmith, ocupa um lugar central. Publicado em 1952 (com o pseudónimo ‘Claire Morgan’), a sua visão directa e subtil do amor de duas mulheres conferiu-lhe um estatuto de culto que, de alguma maneira, ecoa na versão que Todd Haynes agora realiza, conservando o título da tradução francesa, "Carol", que acabou por ser internacionalmente adoptado.

Daí a resumir o filme de Haynes numa qualquer atitude "panfletária" vai um passo que, em boa verdade, convém evitar — o que confere uma energia única e contagiante a "Carol" é a sua capacidade de expor as convulsões do impulso amoroso sem ceder a qualquer universalização dos seus sinais, muito menos dos seus "significados". Este é um filme sobre uma relação que, importa não esquecê-lo, em 1952, era condenada pelos costumes e interdita pela lei.
A partir da admirável direcção fotográfica de Ed Lachman, exibindo as marcas de um certo romanesco clássico (em particular de alguns filmes de Douglas Sirk), "Carol" retrata a relação de duas mulheres, Carol (Cate Blanchett) e Therese (Rooney Mara), que, de facto, tudo separa: as classes sociais (a primeira é uma típica figura da classe média, a segunda trabalha num grande armazém), a postura pública, até mesmo a própria gestão do tempo.
Há na câmara de Haynes/Lachman qualquer coisa de deambulação documental que, ao mesmo tempo, envolve uma invulgar capacidade de expor as mais secretas emoções, sobretudo aquelas que os códigos sociais da época reprimem ou tentam ignorar. A performance das duas actrizes principais revela-se essencial para um belíssimo paradoxo: o de descobrirmos o radicalismo de duas solidões que, afinal, podem comunicar.
Em tempos dominados por visões mais ou menos "tecnicistas" do cinema e das suas possibilidades (em particular do cinema americano), "Carol" impõe-se como um objecto radical, capaz de revalorizar dois importantíssimos vectores: a construção de personagens que existem muito para além da sua figuração digital e um entendimento da narrativa, não como uma acumulação de clímaxes, antes como um processo de contínua descoberta dos enigmas do comportamento humano — é, muito simplesmente, e desde já, um dos grandes acontecimentos do ano cinematográfico.

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