joao lopes
24 Fev 2016 23:36
A representação do Holocausto é, e por certo continuará a ser, uma questão, ao mesmo tempo estética e ética, capaz de dividir a comunidade cinematográfica. Evitemos, por isso, cair na visão confortável segundo a qual algum dia encontraremos uma via "pura" para representar o sistema de extermínio dos judeus criado pelos nazis, relegando tudo o resto para o domínio do "impuro".
Face a "O Filho de Saul", longa-metragem de estreia de László Nemes (representante da Hungria na corrida ao Oscar de melhor filme estrangeiro), sublinhemos, mais que tudo, a singular ousadia de um projecto cinematográfico que arrisca construir-se a partir de um olhar muito especial.
Em Auschwitz-Birkenau, 1944, Saul (Géza Röhrig) é um membro do Sonderkommando — grupo de prisioneiros que os nazis obrigavam a trabalhar nas tarefas diárias dos campos de concentração, nomeadamente no transporte de cadáveres — que, um dia, descobre, entre os mortos, o seu próprio filho. Para ele, trata-se de encontrar uma via para não o lançar nos fornos crematórios, garantindo-lhe uma sepultura digna.
O impacto do trabalho de Nemes decorre de um singular dispositivo cinematográfico. Assim, tudo o que vemos (e ouvimos — as ambiências sonoras são absolutamente fundamentais) decorre do modo como a câmara segue Saul, transformando-se em objecto cúmplice do seu olhar e também do seu desespero. Num certo sentido, a mise en scène cria um efeito de "reportagem" que transporta uma perturbante sensação de verdade.
Consagrado no Festival de Cannes com o Grande Prémio (segunda distinção na hierarquia do certame), "O Filho de Saul" inscreve-se na vaga de títulos que, ao longo dos últimos anos, tem apostado em rever a herança trágica da Segunda Guerra Mundial, superando as fronteiras clássicas do "filme-de-guerra". Há nele uma renovada urgência na preservação da memória do Holocausto e, mais do que isso, na sua partilha com as novas gerações.