2 Set 2016 0:51
É bom encontrar um filme português em que se mostra que é possível lidar com os actores — Miguel Nunes, Margarida Vila-Nova, Ricardo Pereira, João Pedro Vaz, Simão Cayatte, etc. — sem os enclausurar nas tristes rotinas de telenovelas e seus derivados. Não é o único, felizmente. Mas é um facto que a vibração dos corpos, a singularidade dos gestos e os enigmas dos olhares adquirem especial ressonância em "Cartas da Guerra", de Ivo M. Ferreira.
O desafio era imenso. Ou seja: partir do livro de António Lobo Antunes, "D’este Viver Aqui Neste Papel Descripto" (Leya), feito com as cartas escritas pelo autor a sua mulher durante uma comissão de serviço em Angola, para desenhar um fresco sobre a Guerra Colonial. No fundo, tratava-se de saber como articular o intimismo radical da escrita com a ambição de evocar uma tragédia que abalou a sociedade portuguesa (com sinais que, inevitavelmente, persistem no presente).
Ivo M. Ferreira teve dois aliados fundamentais em João Ribeiro (director de fotografia) e Sandro Aguilar (responsável pela montagem). Assim, este mundo assombrado pela beleza austera das imagens a preto e branco vai-se transfigurando numa fluidez narrativa em que, por assim dizer, todas as atitudes individuais se repercutem na dinâmica do colectivo, ao mesmo tempo que qualquer evento global adquire inusitado dramatismo quando sentido na solidão de cada um.
Estamos perante um acontecimento realmente fora de série, superando qualquer visão determinista da história, afastando-se de qualquer distribuição simplista de "culpas". "Cartas da Guerra" é um filme vivo e perturbante que, por assim dizer, vai desvendando o seu próprio método de aproximação de uma complexa teia de factos e memórias, coisas concretas e coisas fantasmáticas. A maneira mais simples de o dizer será: estamos perante um dos acontecimentos maiores do ano cinematográfico de 2016.