joao lopes
22 Out 2016 0:51
Consagrado no Festival de Locarno com o prémio de realização, João Pedro Rodrigues consegue com "O Ornitólogo" uma notável síntese das componentes essenciais do seu cinema. A saber: uma relação dúplice com a natureza, uma celebração da ambiguidade de qualquer desejo, enfim, a possibilidade sempre em aberto de o cinema escapar ao seu realismo original.
A sinopse é tão transparente quanto "imperfeita": Fernando (Paul Hamy) é um estudioso solitário da vida dos pássaros. Algures na região do Douro, ele começa por ter algo de um cineasta documental: contempla, num misto de curiosidade e interesse científico, os "bastidores" da natureza.
Dir-se-ia que são os encontros com outros seres humanos que o desviam da sua actividade, a começar por esse cruzamento com duas jovens chinesas que vão a caminho de Santiago de Compostela…
A partir daí, a "naturalidade" das situações vai sendo transfigurada por elementos sexuais, estranhezas simbólicas, sugestões de redenção — Santo António de Lisboa é mesmo uma referência evocada, aliás presente no cartaz do filme através de uma citação: "As coisas acontecem, basta acreditar".
Acreditar no cinema — eis a contagiante máxima da visão do mundo de João Pedro Rodrigues, presente nos seus anteriores trabalhos (p. ex.: "Odete", 2005), incluindo aqueles que co-realizou com João Rui Guerra da Mata (p. ex.: "A Última que Vez que Vi Macau", 2012). Agora, com "O Ornitólogo", trata-se de restabelecer a ponte entre o carnal e o sagrado, o concreto da natureza e a abstracção do pensamento.
Importa acrescentar, aliás, que semelhante via criativa envolve também uma serena demarcação de todas as formas correntes de naturalismo, mais ou menos inspiradas por estereótipos de raiz televisiva (incluindo as que obedecem ao "espontaneísmo" da reality TV). "O Ornitólogo" é, enfim, um filme que relança o cinema como uma arte de gerar paisagens e sensações alternativas.