joao lopes
23 Dez 2016 23:20
Quais as hipóteses de um filme iraniano — sublinho: do Irão — em plena quadra natalícia? Como é que esse filme se pode "defender" da avalancha promocional que sustenta os produtos típicos de Natal ("bons" ou "maus", não é isso que está em causa)?
Será que dois prémios em Cannes — interpretação masculina e argumento — são suficientes para que "O Vendedor" [título internacional: "The Salesman"], de Asghar Farhadi, seja conhecido e reconhecido por algum público?
Eis algumas questões que quase ninguém formula (e muito poucos arriscam enfrentar), mas que estão no centro da actual dinâmica — ou falta de dinâmica — do mercado. Claro que aquilo que está em causa não são os filmes que, de uma maneira ou de outra, são mais falados e mais vistos. O que está em causa é, ainda e sempre, o valor essencial da diversidade.
No caso de "O Vendedor", a diferença é tanto mais interessante quanto não apaga, antes multiplica, o seu alcance universal. Estamos, assim, perante uma história obviamente enraizada num contexto eminentemente iraniano: um casal de actores (a trabalhar numa encenação de "A Morte de um Caixeiro Viajante", de Arthur Miller) tenta resolver a crise que os assalta — a pouco e pouco, por uma espécie de assombramento material e moral, todas as relações parecem abaladas…
O espectador atento reconhecerá a coerência de Farhadi. Tal como em "Uma Separação" (2011) e "O Passado" (2013), ele trabalha a partir dos elementos mais enraizados do quotidiano — neste caso, um incidente protagonizado pela mulher (confundida com uma prostituta) — para, a partir do seu desenvolvimento, observar as fronteiras das próprias relações humanas. Dir-se-ia entre as máscaras do teatro e as intensidades da vida sem máscaras.
É um filme de uma rara subtileza humana, alicerçado num realismo metódico e obsessivo, para mais ligado a um notável trabalho de representação — Shahab Hosseini e Taraneh Alidoosti definem mesmo um dos mais espantosos pares de actores vistos ao longo de 2016.