joao lopes
14 Out 2017 22:11
Um homem conduz obsessivamente o seu veículo… Obsessivamente? Ou apenas metodicamente? Aliás, ele não parece dirigir-se a nenhum lugar específico, antes procura encontros mais ou menos casuais com pessoas (um soldado, um estudante de teologia, etc.) a quem apresenta uma insólita proposta: primeiro, revela que planeia suicidar-se; segundo, quer que o seu interlocutor lhe garanta que o irá sepultar condignamente.
Estamos perante a máxima depuração da obra do iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016). Neste filme, "O Sabor da Cereja" (1997), agora reposto em cópia restaurada, ele prolonga, afinal, o misto de desencanto e ironia com que já observara a fragilidade do ser humano em títulos como "E a Vida Continua" (1992) ou "Através das Oliveiras" (1994) — trata-se de encenar o desafio máximo de enfrentamento do silêncio da morte.
Um dos mais desconcertantes efeitos do filme nasce do seu alheamento de qualquer "explicação" para o comportamento do protagonista. Dir-se-ia que, tanto ele como as personagens, novos e velhos, com que se vai cruzando, são peões de uma parábola de desenvolvimento infinito — caminhamos para a morte experimentando, porventura testando, o nosso primordial desejo de viver.
"O Sabor da Cereja" possui aquela magia que resulta de um olhar de calculada ambivalência: por um lado, estamos perante uma ficção metodicamente construída; por outro lado, Kiarostami preserva uma respiração narrativa próxima do documentário, fazendo-nos sentir que a verdade do cinema se enraiza na sua própria duplicidade figurativa. Vinte anos depois, este é um filme raro tecido de mistério e transparência, sempre igual, sempre diferente.