30 Nov 2017 23:43
A imagem de Harry Dean Stanton a dialogar com David Lynch poderá fazer-nos pensar que estamos num filme do próprio Lynch. Afinal de contas, o emblemático actor americano, falecido no passado dia 15 de Setembro, contava 91 anos, foi uma figura cúmplice dos enigmas lynchianos, tendo ainda surgido na nova temporada de "Twin Peaks". Mas não: estamos perante um dos títulos finais de Harry Dean Stanton, "Lucky", realizado por John Carroll Lynch (actor a estrear-se na realização).
"Lucky" talvez se possa definir como um objecto que nasce, justamente, da presença de Harry Dean Stanton, ou melhor, do facto de o seu envelhecimento se adequar de forma singularmente realista ao envelhecimento da própria personagem central. Não por qualquer lógica voyeurista, antes porque o actor aceita que a sua performance favoreça também uma espécie de documentário surreal sobre as vivências daquela cidadezinha made in USA em que tudo acontece.
E lembramo-nos da tradição clássica do "western", em particular dos seus lugares de escassos habitantes em que as rotinas do dia a dia parecem favorecer uma reflexão mais ou menos irónica sobre a fragilidade da vida e a certeza da morte. Embora situado num tempo que reconhecemos cúmplice do nosso, "Lucky" mobiliza essas memórias, de desencantada nostalgia, revisitando o imaginário de um tempo que não pode ser repetido, muito menos mimado.
Lynch (John Carroll, neste caso) consegue, afinal, celebrar os pequenos incidentes da existência humana, com eles e através deles defendendo uma ideia de cinema que passa, justamente, antes do mais, pela fisicalidade dos actores. Em tempo de tantos delírios gratuitos dos (chamados) efeitos especiais, "Lucky" é uma declaração de amor pelos actores e pelas respectivas personagens — acreditando ainda num cinema humano, porventura demasiado humano.