Géza Morcsnáyi e Alexandra Borbély — entre o realismo e o apelo transcendental


joao lopes
20 Dez 2017 18:40

No cinema contemporâneo, não há muitos autores que arrisquem trabalhar sobre as matrizes clássicas do melodrama integrando componentes de natureza mais ou menos fantástica. O menos que se pode dizer do filme "Corpo e Alma", da cineasta húngara Ildikó Enyedi (é o representante da Hungria na corrida às nomeações para o Oscar de melhor filme estrangeiro), é que nele encontramos esse risco, sempre fascinante, de sugerir uma dimensão transcendental do amor sem anular as componentes visceralmente realistas dos espaços em que a acção decorre.

Tudo se passa no cenário frio de um matadouro, entre o respectivo responsável financeiro (Géza Morcsányi) e uma inspectora que chega para uma tarefa de fiscalização (Alexandra Borbély): ele, solitário e relativamente distante dos colegas; ela, ainda mais solitária, fechada no seu casulo de rituais cumpridos de forma obsessiva. Por circunstâncias acidentais, vêm a descobrir que partilham os mesmos sonhos, literalmente, protagonizados por um casal de veados numa paisagem de frio e neve…



O mais surpreendente — e, por isso, mais envolvente — no labor de encenação de Ildikó Enyedi é a sua desarmante postura literal. Neste sentido: não se trata de desenvolver qualquer "tese" sobre a cumplicidade onírica das duas personagens centrais, mas sim de encarar a partilha dos sonhos como um fenómeno, por certo, excepcional, mas também de desarmante naturalidade.

"Corpo e Alma" desenvolve-se, assim, como uma teia de acontecimentos microscópicos em que o mais discreto movimento dos olhos ou a simples (?) vibração muito física da pele, não são o acessório, mas o essencial. A direcção de actores é impecável, sendo a composição de Alexandra Borbély qualquer coisa de verdadeiramente excepcional — foi, aliás, eleita melhor actriz europeia de 2017 nos Prémios do Cinema Europeu.

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