28 Jan 2018 0:23
Face a um documentário que se chama "Gatos", seremos talvez levados a colocar uma pergunta banalmente descritiva: são gatos selvagens ou animais que vivem em casa?… Pois bem, neste caso, a separação entre uma coisa e outra está longe de ser pertinente. Que é como quem diz: o filme da cineasta turca Ceyda Torun existe para nos dar conta das vivências de muitos gatos nas ruas de Istambul que, na verdade, existem numa relação constante, exemplarmente amistosa, com os seres humanos.
A surpresa resulta disso mesmo: o carácter arisco que tendemos a associar aos animais de rua não se verifica aqui. Bem pelo contrário: Ceyda Torun dá-nos conta de uma coexistência entre felinos e humanos que não resulta de um plano "municipal" ou de qualquer medida de reconversão "urbana" — o que nos é dado ver decorre de um modo de viver e conviver profundamente enraizado na cidade.
Importa, por isso, sem receio das palavras, falar de uma cultura dos gatos. E sejamos claros neste aspecto: falar de um factor cultural, não é falar das "óperas" ou "bailados" que as pessoas consomem ou não consomem… O adjectivo cultural remete-nos, não para uma qualquer lista de referências "artísticas", mas sim para os modos de organização de indivíduos e sociedades — e existir assim, nesta serena cumplicidade com os gatos, decorre de uma dinâmica cultural enraizada num genuíno respeito pelos animais.
Simples, directo, esclarecedor, "Gatos" é um filme que surpreende também pela capacidade de nos dar a ver a vida através do ponto de vista dos gatos. Em sentido literal: a câmara de Ceydan Torun acompanha os movimentos dos gatos, mesmo os mais acrobáticos, reforçando o efeito de real que perpassa em todas as suas imagens. É por isso um esclarecedor exemplo das potencialidades do olhar documental — ainda bem que encontrou um lugar no mercado de exibição.