9 Jul 2018 0:55
Não é todos os dias que deparamos com uma actriz a ousar lidar com os gestos e fantasmas de uma personagem que escapa a qualquer padrão dramático. É isso mesmo que acontece no filme "Nico, 1988", centrado nos anos finais daquela que foi a lendária voz do primeiro álbum dos Velvet Underground, aliás intitulado "The Velvet Underground & Nico" (1967): a dinamarquesa Trine Dyrholm é um prodígio de sensibilidade e mistério na composição de uma mulher que, afinal, luta por escapar aos clichés com que a quiseram definir.
A começar pelo nome. Nico era alemã, nascida em Colónia, em 1938, e chamava-se Christa Päffgen. O filme acompanha-a entre 1986 e 1988 (faleceu a 18 de Julho de 1988, ainda não tinha completado 50 anos) e um dos primeiros sinais de mal estar que descobrimos decorre do facto de ela querer ser chamada pelo seu nome verdadeiro — como se "Nico" fosse um fantasma de que era preciso libertar-se.
Na dupla qualidade de argumentista e realizadora, a italiana Susana Nicchiarelli aposta em combater essa facilidade biográfica que consiste em confundir a dimensão mítica de uma personagem com as suas vivências específicas do dia a dia. Neste sentido, podemos dizer que "Nico, 1988" é um filme contra a ideologia dos "famosos" que contamina todo o nosso espaço mediático — descobrimos uma criadora invulgar (afinal de contas, o seu primeiro disco a solo, "Chelsea Girl", surgiu ainda em 1967), assombrada por uma cruel pulsão trágica.
A Nico/Christa de Nicchiarelli é, assim, uma mulher marcada pela dependência da heroína (que tentou combater, através de tratamentos de metadona) e também pela ânsia de restabelecer relações com o seu filho (que foi educado pelos avós paternos). Daí que "Nico, 1988" seja atravessado por uma infinita mágoa que ecoa nas canções da protagonista — para ela, a música funcionou como matéria viva da sua solidão.