O filme sobre Freddie Mercury, "Bohemian Rhapsody", tem tanto de competência técnica como de convencionalismo dramático — e o esforço do actor Rami Malek acaba por ter algo de inglório...
Como fazer a biografia de Freddie Mercury (1946-1991)? Ou, pelo menos, como criar uma personagem cinematográfica que envolva as memórias de Freddie Mercury?
As perguntas integram, afinal, as dúvidas expressivas de qualquer retrato biográfico no cinema. É possível confiar no saber que os espectadores possam possuir sobre a própria figura retratada. Mas isso não basta — é preciso que, no plano dramático e dramatúrgico, a personagem adquira consistência e verosimilhança, enfim, alguma forma de vida.
"Bohemian Rhapsody", sobre Freddie Mercury, precisamente, nasce da resposta mais cómoda. Porquê? Porque é uma resposta enraizada nas convenções mais preguiçosas do espaço televisivo: procura-se criar um "duplo" do retratado, de modo que a sua presença no ecrã seja recebida como sinal de um indesmentível grau de "verdade".
É bem verdade que não falta entrega e esforço no trabalho de Rami Malek, obcecado com a imitação "perfeita" de Freddie Mercury. Resta saber se acumulação dos detalhes, obviamente trabalhados com imensa atenção (dos dentes salientes à pose triunfal de palco), basta para sustentar um filme que, além do mais, se propõe traçar um retrato épico dos Queen, desde o mais radical anonimato até à condição de fenómeno global.
Podemos discutir infinitamente sobre os méritos ou deméritos das "parecenças" de Malek com Mercury… O certo é que há pouco cinema para pensar através de tal discussão. "Bohemian Rhapsody" vai-se enredando em lugares-comuns psicológicos sobre o mundo do rock e as ambivalências da fama, parecendo ter como "mensagem" compulsiva o facto de os outros elementos dos Queen também terem tido um papel autoral nas respectivas canções…
Fica a apoteose final da performance dos Queen no Live Aid (13-07-1985): a energia das canções está lá, obivamente, mantendo o seu poder contágio emocional, mas não é fácil aderir a um estádio de Wembley digital, tratado com a aceleração típica da televisão mais rotineira, estranha às singularidades do acontecimento original — aliás, para quê tentar rivalizar com o carácter irredutível e irrepetível desse acontecimento?
Enfim, vale a pena lembrar que a gestação do filme esteve longe de ser pacífica. Bryan Singer assina a realização a solo porque as regras da Directors Guild assim obrigam. O certo é que os seus desentendimentos com a produção fizeram com que não concluísse o seu trabalho, tendo sido chamado Dexter Fletcher para a fase final da rodagem.
Será que tais atribulações ajudam a explicar a competência apenas esquemática, algo frustrante, dos resultados? Seja como for, fica a sensação de que a personagem biografada é maior e mais interessante que a biografia…