Memórias do começo dos anos 70: Orson Welles, Peter Bogdanovich e John Huston

crítica

Orson Welles ou o regresso ao futuro

Esperámos mais de 40 anos, mas "O Outro Lado do Vento" aí está: o filme que Orson Welles rodou nos primeiros anos da década de 70 torna-se um dos acontecimentos maiores do ano cinematográfico de 2018.

Benedetta

joao lopes

8 Nov 2018 23:55

E se, de repente, a história do cinema nestes nossos dias atribulados do século XXI recomeçasse no início da… década de 70?

Assim é: com a estreia de "O Outro Lado do Vento", na plataforma Netflix, deparamos com um prodigioso objecto de cinema começado há mais de 40 anos… Por quem? Por Orson Welles (1915-1985), autor de títulos míticos como "O Mundo a Seus Pés" (1941), "A Dama de Xangai" (1947) ou "O Processo" (1962), um dos grandes experimentadores das linguagens cinematográficas que, como se prova, continua a pertencer à nossa actualidade.

A história de "O Outro Lado do Vento" possui o fôlego de uma verdadeira epopeia. De facto, apesar do seu empenho, Welles rodou o filme ao longo de vários anos, mas não conseguiu reunir meios financeiros para o concluir. Foi ele próprio que passou a respectiva herança para o seu amigo Peter Bogdanovich, cineasta da geração dos "movie brats" ou do chamado "New Hollywood" — se Welles não conseguisse finalizá-lo, Bogdanovich assumiria as responsabilidades da respectiva conclusão.

Graças a Bogdanovich, à Netflix e a toda uma complexa equipa de pós-produção, "O Outro Lado do Vento" aí está: foi preciso esperar algumas décadas, mas podemos agora ver & compreender como Welles possuía a percepção, de uma só vez didáctica e visionária, de que o cinema estava a sofrer transformações irreversíveis. Este é mesmo um filme centrado num cineasta, interpretado por John Huston, que sente cada vez mais dificuldades em concretizar projectos que, obviamente, escapam aos valores correntes da indústria.

Escusado será insistir no facto de a personagem de Huston funcionar como um projecção muito directa dos impasses do próprio Welles, do seu gosto experimental e também do desejo de preservar alguma ideia de cinema que não se perca no labirinto audiovisual (ontem como hoje).

Isto sem esquecer que há um outro cineasta na galeria de personagens do filme, dir-se-ia um discípulo & crítico, sintomaticamente interpretado pelo próprio Bogdanovich. Aliás, a esse propósito, importa não esquecer que Bogdanovich é autor de uma obra notável, repartida por livros que vão desde a crítica propriamente dita até à antologia de entrevistas, sem esquecer as abordagens específicas do universo de Welles.

Daí que possamos definir "O Outro Lado do Vento" como uma experiência a meio caminho entre documentário e ficção, embora num sentido eminentemente perverso: ao contar a história de um cineasta que depara com os maiores bloqueios materiais, Welles está a desenvolver uma linha ficcional muito sofisticada; ao mesmo tempo, há no seu trabalho uma pulsão documental que reconverte todos os elementos da ficção em testemunhos preciosos de um momento de interrogação (e introspecção) do futuro do cinema.

É verdade que os elementos iconográficos e a energia narrativa de "O Outro Lado do Vento" apelam a um lugar específico. A saber: a sala escura. Ao mesmo tempo, seria um banal cinismo jornalístico diminuir o fulgor e o génio de Welles em função de qualquer avaliação moralista dos circuitos actuais do próprio mercado cinematográfico.

De uma maneira ou de outra, "O Outro Lado do Vento" é um acontecimento ímpar no panorama deste 2018 cinematográfico. Para além do enriquecimento da nossa visão de Welles, este é também um filme que, no seu limite conceptual e simbólico, vem interrogar essa experiência singular de ser espectador. Em tempos de saturação de imagens e sons esvaziados de qualquer gosto humano, Welles devolve-nos o poder fascinante do cinema como método de registo e reinvenção do nosso mundo — a vanguarda é ele.