joao lopes
7 Dez 2018 23:26
… e Paolo Sorrentino arriscou fazer um filme sobre Silvio Berlusconi. De onde vem o risco? Pois bem, do facto de a figura do ex-primeiro ministro de Itália surgir automaticamente recoberta por camadas de "mediatismo" e "ideologia" que tornam difícil aceder à própria personagem. Daí a nuance que importa sublinhar: "Silvio e os Outros" é um filme sobre o desejo de aceder ao próprio mito de Berlusconi.
Porquê? Porque a figura central do filme (ou, pelo menos, do seu lançamento dramático) não é Berlusconi, mas sim Sergio Morra, um homem de negócios que utiliza a sua rede de "acompanhantes" femininas para obter favores dos políticos. Afinal de contas, para Morra, aceder à intimidade de Berlusconi, eventualmente através das suas prostitutas, corresponde a um acontecimento redentor — o mito sobrepôs-se a qualquer realidade.
A subtil inteligência da mise en scène de Sorrentino radica na exponenciação desta permissa. Que é como quem diz: quando Berlusconi surge, não é apenas Morra que "passa" para uma dimensão transcendental; o próprio Berlusconi assume-se como transcrição mitológica da sua fama, comportando-se como uma entidade que, continuamente, se contempla no mais frívolo narcisismo.
O filme consegue, assim, dar-nos a ver a paisagem política como uma coisa de fantasmas. E tanto mais quanto Toni Servillo e Riccardo Scarmacio são brilhantes, respectivamente como Berlusconi e Morra. Fica a expectativa de virmos a descobrir a versão original de Sorrentino, estreada nas salas italianas, com cerca de três horas e meia de duração — vemos apenas a chamada versão internacional (com uma hora a menos), o que não impede "Silvio e os Outros" de ser um belo e perturbante objecto de cinema.