joao lopes
14 Dez 2018 23:39
Eis um filme que, de forma mais ou menos inevitável, será visto como um sintoma das muitas discussões sobre as diferenças de género, transversais aos espaços da legislação, da política, dos usos e costumes.
E há razões para isso: este prodigioso "Girl" é, afinal, a história de Lara, rapariga que nasceu num corpo de rapaz (de nome Victor) e, através de um labirinto de alegrias e angústias, vive o seu processo de mudança de sexo.
Ainda sim, quanto mais não seja por uma questão de valorização dos filmes enquanto objectos de cinema (e não apenas através dos "temas" que convocam), importa dizer que tal valor sintomático está longe de esgotar a beleza, a serenidade e também as vibrações emocionais desta primeira longa-metragem do belga Lukas Dhont (distinguida com a Câmara de Ouro do Festival de Cannes de 2018).
Estamos muito longe das ficções militantes que, mesmo quando informadas pelo mais cândido discurso de exaltação das diferenças humanas, tendem a encerrar as personagens em esquemas "desmonstrativos" — como se a vida íntima dessas personagens se reduzisse a uma banal câmara de eco de debates públicos (mais ou menos televisivos).
Reeencontramos em "Girl" as razões de um realismo à flor da pele em que cada momento acontece através de uma peculiar vibração dramática. Lukas Dhont sabe filmar olhares, gestos e silêncios com a serena arte de quem procura a verdade radical de um ser que enfrenta as convulsões da sua própria identidade. O actor principal, Victor Polster, afirma-se, aliás, como um exemplo raro de encarnação radical de uma personagem — dir-se-ia que podemos contemplar os elementos conscientes e inconscientes da sua história desenhados nas nuances de um só corpo.
Fica, enfim, uma celebração e uma nota de desencanto: primeiro, reconhecendo que as convenções comerciais do "cinema-de-Natal" não excluíram a presença nas salas de um objecto tão precioso como "Girl"; depois, questionando as regras (ou a falta delas) que fazem com que, globalmente, o mercado tenha perdido a capacidade de dar a devida visibilidade a filmes como este.
Como defender — entenda-se: promover — os filmes que, como "Girl", não se enquadram nos padrões dominantes do marketing? Eis uma interrogação que foi pontuando o ano de 2018. Eis uma dúvida que, incomodamente, se transfere para 2019.