joao lopes
14 Fev 2019 23:44
Quando assistimos à evidência (por vezes proteccionista) que os filmes americanos ditos de "acção", com heróis mais ou menos "super", têm no espaço mediático internacional, sou levado a perguntar até que ponto as audiências mais jovens, especialmente visadas por tais produtos, conhecem minimamente a tradição política de Hollywood…
Não é tanto a questão geracional que, aqui, refiro, mesmo se a sua importância (educacional & simbólica) não pode ser menosprezada. Estou apenas a apontar um grave défice de conhecimento. De facto, de "Young Mr. Lincoln/A Grande Esperança" (1939), de John Ford, a "W." (2008), de Oliver Stone, passando por "Os Homens do Presidente" (1976), de Alan J. Pakula, tal tradição é absolutamente essencial para compreendermos as dinâmicas criativas e ideológicas de Hollywood.
Os exemplos citados são, obviamente, selectivos. E não apenas porque são espantosos objectos de cinema, longe, muito longe, de qualquer acumulação gratuita de efeitos especiais… São também filmes que, directa ou indirectamente, colocam em cena Presidentes dos EUA. Daí a curiosa ironia que nos traz o filme "Vice", de Adam McKay — desta vez, tudo gira em torno de um vice-presidente.
Muito se tem falado da transfiguração física de Christian Bale para interpretar a personagem de Dick Cheney (n. 1941), vice-presidente de George W. Bush. E não há dúvida que o trabalho do actor possui essa capacidade mimética que só está ao alcance dos profissionais mais exigentes e sofisticados. Em qualquer caso, seria precipitado reduzir o interesse do filme a tal proeza.
Lembram-se de "A Queda de Wall Street", realizado pelo mesmo Adam McKay em 2015? Aí encontrávamos uma pequena grande proeza cinematográfica. A saber: a abordagem dos primórdios da crise económica de 2008, não através de signos abstractos, ditos "especializados", mas sim como um sistema de relações entre pessoas.
Podemos definir o impacto de "Vice" através de algo semelhante. O filme vai-nos revelando um Dick Cheney que encara cada relação humana como elo de uma cadeia de poder, de construção e consolidação de poder. Daí a requintada estrutura não linear: não se trata tanto de propor um jogo convencional de "flashbacks", mas antes de gerar uma textura narrativa em que acontecimentos por vezes muito distantes no tempo ecoam uns nos outros, revelando a argúcia, não poucas vezes inquietante, do seu protagonista.
"Vice" tem oito nomeações para os Óscares, incluindo melhor filme, melhor actor e melhor realizador. Seja como for, quase todas as previsões parecem colocá-lo fora da corrida para as principais estatuetas. Uma coisa é certa: numa época de revisão crítica das linhas de força da política made in USA, em grande parte motivada pela acção da administração Trump, "Vice" surge como sintoma exemplar dessa urgência social que é também, de uma só vez, cinematográfica e… política.