joao lopes
14 Mar 2019 20:05
Uma das tendências mais curiosas do "boom" que o documentário tem vivido na última década decorre da sua calculada contaminação por elementos que estão longe de ser estritamente documentais. O filme de João Salaviza e Renée Nader Messora, premiado em Cannes, "Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos", pode servir de sintoma exempar de tal tendência.
Aqui estamos, de facto, perante uma ambígua reportagem sobre os índios Krahô, no estado brasileiro de Tocantins. Porquê ambígua? Porque o filme começa sob o signo de um luto transcendental (a voz do pai que convoca o filho), desde esse momento integrando e, por assim dizer, exponenciando as componentes mágicas associadas a tal atitude.
Não surpreende, por isso, que a ida do protagonista (Henrique Ihjãc Krahô) à cidade funcione como uma sequência especialmente reveladora: há, de facto, uma incompatibilidade anímica entre as regras do espaço urbano e os valores enraizados nas vivências ancestrais dos Krahô — em última instância, "Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos" tem como tema nuclear a revelação e compreensão desses valores.
Uma componente técnica muito particular confere ao filme uma "respiração" visual hoje em dia pouco comum. Estamos, assim, perante imagens registadas em película de 16 mm, exibindo um grão muito particular e intensidades cromáticas que os automatismos digitais nos podem fazer esquecer. Também neste caso, não se trata de uma questão meramente nostálgica, mas do culto de uma verdade primordial.