Valerie Pachner e August Diehl em


joao lopes
16 Jan 2020 18:14

O génio de alguns grandes autores da história do cinema revela-se através da capacidade de aplicar modelos narrativos comuns, transfigurando-os e, num certo sentido, virando-os do avesso — o exemplo dos "thrillers" e melodramas de Alfred Hitchcock poderá ser uma boa referência. Outros parecem pertencer a um "género" sem mais autores: pelo menos desde "A Árvore da Vida" (2011), o americano Terrence Malick é um desses criadores solitários.

Escusado será dizer que "Uma Vida Escondida" ["A Hidden Life"], o filme que Malick apresentou na competição de Cannes/2019, prolonga essa dimensão singular — e tanto mais quanto a vibração intimista do mais pequeno gesto, do mais breve olhar, adquire no seu trabalho o peso de um acontecimento específico, ora carregado de mistério, ora abrindo para uma luz redentora.

Ainda assim, com uma diferença que está longe de ser secundária. Neste caso, Malick evoca uma personagem verídica: o austríaco Franz Jägerstätter (1907-1943), que entrou na história como um pacifista que, em plena Segunda Guerra Mundial, recusou integrar o exército nazi. Em boa verdade, isso não faz de "Uma Vida Escondida" um filme "mais" realista na trajectória do seu realizador. Implica, isso sim, um reforço da sua essencial dinâmica dramática. A saber: a celebração obsessiva das experiências individuais no interior das convulsões colectivas.

O filme esteve para se intitular "Radegund", nome da povoação das montanhas austríacas onde vive o protagonista, com a mulher, Franziska, e três filhas pequenas. O local é deslumbrante, por razões paisagísticas, sem dúvida, mas também porque Malick nos faz sentir um profundo e perturbante contraste — entre a sua energia vital e a codificação da violência (emocional e física) que prevalece no funcionamento da máquina militar de Adolf Hitler.

Será, talvez, importante sublinhar o facto de, uma vez mais, tudo isso acontecer no universo "malickeano" através de uma sábia gestão do trabalho dos actores, aqui com inevitável destaque para os intérpretes de Franz e Franziska, respectivamente August Diehl (vimo-lo, port exemplo, em "Sacanas sem Lei", de Quentin Tarantino) e Valerie Pachner ("Stefan Zweig: Adeus, Europa"). Malick é, em última instância, um cineasta do corpo, das suas configurações, desde os cenários mais secretos até aos espaços do domínio público — "Uma Vida Escondida" aí está, como uma das mais perfeitas expressões da sua visão.

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