joao lopes
30 Jan 2020 23:49
A pergunta é, de uma só vez, formal e conceptual: como refazer, em cinema, neste nosso século XXI, o romance "Mulherzinhas", de Louisa May Alcott? E justifica-se não só porque se trata de um livro publicado em 1868, estranho à maior parte das actuais opções literárias dos grandes estúdios, mas também porque há todo um património de versões cinematográficas de "Mulherzinhas" que terá como pedra fundamental a produção de 1933, assinada por George Cukor.
Digamos, para simplificar, que na dupla condição de autora do argumento adaptado e responsável pela realização, Greta Gerwig contorna todos os clichés que pudessem envolver uma qualquer opção "revivalista". Mais do que isso: as suas luminosas "Mulherzinhas" são a ilustração muito clara (e apetece dizer: muito contundente) de uma arte narrativa que sabe pensar — e pensar-se — para o seu tempo, sem quebrar uma relação orgânica com a mais nobre tradição do melodrama cinematográfico.
As quatro irmãs March, vivendo com meios austeros no tempo da Guerra Civil Americana, surgem, assim, como um painel de comportamentos, pensamentos e emoções pontuado por uma questão nuclear: que significa ser mulher? Refazendo e, num certo sentido, contestando a linearidade factual do livro, Gerwig apresenta-nos, afinal, uma verdadeira demanda de identidade(s).
Jo, Meg, Amy e Beth vivem as alegrias e dramas de um tempo em que a sua condição vacila, ao mesmo tempo que lhes exige uma admirável capacidade de afirmação. Entenda-se: a descoberta/invenção de um discurso próprio que as demarque dos valores mais tradicionais que, eventualmente, podem limitar e delimitar a sua existência e, por fim, a verdade do feminino.
Além do mais, o filme de Gerwig revela o know how, visceralmente clássico, que atribui às singularidades dos actores — neste caso, das actrizes — uma função essencial de exposição de todas as convulsões e enigmas das personagens .
Talvez seja inevitável referir com algum destaque a brilhante Saoirse Ronan, no papel de Jo, a "mulherzinha" que defende o seu desejo de ser escritora, mas importa não menosprezar as delicadas composições de Emma Watson, Florence Pugh e Eliza Scanlen (Meg, Amy e Beth, respectivamente). Sem esquecer, claro, a breve e primorosa participação de Meryl Streep no papel da tia velha, rabugenta e pragmática, numa palavra, sobrevivente.