5 Mar 2020 18:57
Para lá da evolução das formas de produção, vivemos um tempo de desmantelamento das formas tradicionais de ver e consumir cinema. Não será preciso sublinhar que, para o melhor e para o pior, a generalização do “streaming” está a gerar um novo imaginário cinematográfico — sem esquecer que é, no mínimo, discutível que ainda o possamos classificar como “cinematográfico”, uma vez que muitas das suas manifestções são cegas e surdas às formas clássicas de cinefilia.
Um dos efeitos mais perversos desse processo, de uma só vez cultural e económico, social e simbólico, é a redução dos filmes a uma panóplia de “temas” apontados como valor fundamental de qualquer narrativa fílmica. Exemplos? Nos mais diversos contextos, “Jojo Rabbit” é consagrado como filme “sobre” o nazismo, ainda que a sua criatividade esteja ao nível de um número banal de “stand-up”… Ao mesmo tempo, Clint Eastwood assina um objecto de labiríntica complexidade humana como “O Caso de Richard Jewell”, problematizando a América como projecto & utopia, mas o seu trabalho é maioritariamente tratado como a crónica, mais ou menos “policial”, de um atentado nos Jogos Olímpico de Atlanta…
Servem estas referências (por certo susceptíveis de uma reflexão de outro âmbito, pouco ou nada favorecida pelos valores dominantes no espaço mediático e, convenhamos, exterior à maior parte dos discursos críticos) para situar o filme “Mosquito”, de João Nuno Pinto, como um objecto paradoxal — entre o risco motivador e a facilidade da rotina.
Na verdade, não é, nunca foi, frequente o género a que chamamos “filme-de-guerra” tratar as memórias da Primeira Guerra Mundial (favorecendo antes a abordagem do conflito de 1939-45). E não apenas na produção portuguesa, entenda-se. O recente e admirável “1917”, de Sam Mendes, será outras das excepções que pode servir para confirmar a regra, ainda que este texto não pretenda sugerir qualquer tipo de paralelismo (temático, conceptual, narrativo) entre os dois títulos.
Ao mesmo tempo, resta saber até que ponto a singularidade do contexto da acção — trata-se de encenar a drástica experiência de Zacarias, um jovem soldado português, em 1917, não nos cenários europeus da guerra, mas em Moçambique — existe menos como matéria de encenação, acabando por funcionar mais como “caução” simbólica do retrato que se apresenta.
Isto porque tudo se passa como se o labor do argumento fosse menos o confronto com as especificidades do contexto e da personagem, e mais a confirmação de um destino (narrativo) desde muito cedo fechado pelo enquadramento dramático da personagem.
Daí uma consequência prática: a possível ou potencial criatividade dos actores é um dos factores mais drasticamente limitado. Para além de Zacarias (João Nunes Monteiro), personagens como o sargento Justino (João Lagarto) são entidades sem outra espessura que não seja a confirmação de dois ou três detalhes mais ou menos pitorescos, decididos desde a sua primeira aparição — sem esquecer que o pitoresco não se confunde o caricatural, sendo antes um espartilho narrativo que faz com que uma personagem seja uma marioneta do "sentido" que a determina; e sem esquecer também que há grandes tradições do pitoresco, dramáticas ou cómicas (lembremos o teatro de revista) que, em qualquer caso, são alheias ao que aqui acontece.
Através dessa dinâmica, “Mosquito” ilustra também uma tendência de muitas produções contemporâneas (de todas as origens): a intensificação dos efeitos decorativos, tendencialmente maneiristas, típicos de um certo look publicitário, surge como forma de “compensar” a fragilidade da sua dramaturgia. O que, entenda-se, não exclui o reconhecimento de que estamos perante um objecto marcado por uma competência técnica de nível industrial (observe-se a direcção fotográfica de Adolpho Veloso), tanto mais significativa quanto, como é óbvio, a rodagem em cenários africanos terá envolvido dificuldades de produção muito específicas.
Como pequeno parêntesis de filosofia cinematográfica, vale a pena lembrar que esse decorativismo que aponto a “Mosquito” será tudo o que se quiser, menos um dado evidente, muito menos de cariz universal. Há quem, por exemplo, veja uma limitação mais ou menos idêntica num filme como “Uma Vida Escondida”, de Terrence Malick, curiosamente também sobre uma conjuntura bélica (Segunda Guerra Mundial), a meu ver um caso sublime de reconversão dos padrões clássicos do “filme-de-guerra” através de uma grelha “psicológica” tão original quanto perturbante.
Eis um balanço possível: não será todos os dias que encontramos, assim, um filme português capaz de suscitar tais reflexões — por certo, e ainda bem, gerando também entusiasmos diversos e contrastados. Quanto mais não seja por isso, vale a pena descobrir “Mosquito”, lidando com o inesperado da sua proposta temática e, em particular, com esse imbróglio dramático que, a meu ver, fica por resolver. A saber: fazer um filme para o espectador se limitar a confirmar um significado exposto desde as primeiras cenas, ou arriscar nos meandros de uma significação alheia a fórmulas dramáticas e, por isso mesmo, capaz de desafiar o olhar do próprio espectador?