joao lopes
12 Mar 2020 22:41

Para acedermos ao mundo documental do alemão Werner Herzog, necessitamos de integrar a ideia, tão linear quanto perturbante, de que o documentário não exclui a ficção. Dito de outro modo: em "Family Romance, LLC", os nossos pensamentos e sentidos vão vacilar, quanto mais não seja porque este acompanhamento das actividades de uma empresa que "aluga" seres humanos para criar, ou melhor, incrustar cenas de ficção na vida dos outros (seus clientes) reflecte a vertigem de um mundo em que tudo pode ser simulacro.

Que mundo é esse? Pois bem, o dos dramas e melodramas de uma empresa japonesa (Family Romance, precisamente) que funciona como uma espécie de "troupe" de actores, liderada pelo admirável Ishii Yuichi. A sua especialidade: "preencher" as lacunas das vidas de outros — por exemplo, permitindo a uma jovem adolescente que, finalmente, conheça o pai —, "corrigindo" as respectivas limitações factuais ou afectivas.



O filme comete a proeza de se desenvolver através de um fascinante paradoxo: assim, por um lado, vogamos no interior daquilo que apetece chamar um delírio "racionalizado" — por exemplo, Yuichi falando com a sua "filha" e, depois, contando à mãe aquilo que aconteceu; ao mesmo tempo, por outro lado, por mais inverosímil que cada situação possa parecer, Herzog sabe conservar uma intensa, por vezes perturbante, sensação de espontaneidade.

Já conhecíamos este gosto de Werner Herzog se apropriar dos dados mais peculiares das nossas vivências — lembremos o exemplo de "Eis o Admirável Mundo em Rede" (2016), sobre os prós e contras da Internet —, projectando-os numa envolvente ambiguidade. Não se trata tanto de perguntar o grau de "verdade" daquilo que nos é dado ver, antes de reconhecer que a dicotomia clássica — verdade/mentira — se revela insuficiente para dar conta de um mundo em constante reconversão do seu bizarro naturalismo. Daí que "Family Romance, LLC" tenha tanto de aventura de insólita ficção científica como de cândida reportagem.

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