Brunhilde Pomsel — memórias da Alemanha antes e durante a Segunda Guerra Mundial


joao lopes
8 Jun 2020 3:01

A reabertura das salas de cinema após quase três meses de encerramento tem sido devidamente saudada, ao mesmo tempo relançando muitas e urgentes questões sobre o estado das coisas no mercado cinematográfico — da economia das salas à psicologia dos espectadores, os efeitos do confinamento são, obviamente, dramáticos.

Ao mesmo tempo, seria uma pena que esta reabertura fosse encarada "apenas" como uma vitória simbólica, secundarizando as singularidades dos filmes, uns de novo programados, outros agora estreados. Isto porque creio que o cinema Ideal, em Lisboa (uma das primeiras salas a reabrir), tem em exibição um dos filmes maiores deste nosso ano cinematográfico (entretanto, também disponível em DVD).
A singeleza do seu título, "Uma Vida Alemã", é um desconcertante sinal das convulsões que o habitam. Trata-se de registar as memórias de Brunhilde Pomsel que, entre 1942 e 1945, trabalhou como secretária de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda Nazi. No essencial, o filme integra uma entrevista que, em 2016, ela concedeu a um quarteto de produtores/realizadores: Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer. Pomsel viria a falecer em 2017, contava 106 anos.
Estamos perante uma espantosa expressão do poder evocativo da palavra, da capacidade de, através da fala, nos levar a sentir (e pensar) os ziguezagues interiores de um contexto em que, de facto, deparamos com os sinais de milhões de vidas alemães — da ascensão dos nazis ao poder, em 1933, até ao fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945.
Há uma referência alemã que, creio, poderemos aproximar de "Uma Vida Alemã". Chama-se "Winifred Wagner" (1976) e é também um "filme-entrevista", neste caso do seu realizador Hans-Jürgen Syberberg com a mulher identificada no título — Winifred Wagner foi casada com Siegfried Wagner, filho do compositor Richard Wagner, tendo herdado do marido a direcção do Festival de Bayreuth, até 1945, sempre manifestando vivo apoio a Adolf Hitler.
Filmado num austero e delicado preto e branco, "Uma Vida Alemã" empresta a Pomsel a intensidade de um verdadeiro monumento vivo. E tanto mais quanto a sua evocação de um processo vivido por muitos outros cidadãos alemães — de um certo fascínio pueril pela iconografia e a teatralidade dos nazis até à revelação dos horrores do Holocausto — se faz através de uma precisão do discurso em que cada palavra pesa como "coisa" que transporta a herança, plural e contraditória, de intensas e perturbantes memórias.
Pomsel não contorna nenhuma das questões inevitáveis, desde o seu desejo de ascensão profissional até ao labirinto nacional das culpas individuais e colectivas. Nessse sentido, o trabalho dos quatro realizadores — cuidadosamente pontuado por incríveis documentos visuais e sonoros (muitos deles pouco ou nada divulgados) — acaba por ter como ponto de fuga uma noção, de uma só vez afectiva e filosófica, a certa altura enunciada pela sua entrevistada. A saber: o mal existe.

Tendo em conta que o filme surgiu em paralelo (também no Ideal, também em DVD) com "Quem Escreverá a Nossa História", documentário de Roberta Grossman sobre a repressão nazi (neste caso no Gueto de Varsóvia), creio que vale a pena apontar um evidente contraste: enquanto Grossman se fica pela noção voluntarista e televisiva (cuja honestidade não está em causa) segundo a qual os documentos necessitam de ser "reforçados" por alguma forma de "reconstituição" dos factos, "Uma Vida Alemã" devolve-nos as memórias da Alemanha nazi através da vibração mais íntima, muitas vezes inquietante, da verbalização da sua protagonista.
Daí que seja cinematograficamente inevitável e, de alguma maneira, moralmente indispensável recordar a herança dos filmes de Claude Lanzmann, a começar por "Shoah" (1985). Não se trata, entenda-se, de recusar o poder evocativo e informativo dos materiais de arquivo — "Uma Vida Alemã" é mesmo exemplar na aplicação desse poder, desde as imagens da recolha de cadáveres no Gueto de Varsóvia até ao plano aéreo da cidade de Berlim, totalmente destruída, no final da guerra. Trata-se, isso sim, de reafirmar o valor ancestral da linguagem humana, da nossa condição de seres falantes.
Será preciso acrescentar que, por tudo isso, "Uma Vida Alemã" é também um poderoso objecto de resistência à banalização da fala que, todos os dias, atravessa muitos domínios da "comunicação" televisiva ou das chamadas redes "sociais"? Eis-nos perante um filme que, em última instância, refaz uma crença fundadora do próprio cinema: não ser um mero instrumento de "reprodução", antes um método para lidarmos com a infinita complexidade do mundo, a sua história e, nessa medida, também a nossa história de espectadores.

+ críticas