joao lopes
30 Jul 2020 20:45
Saudades de Cannes… Na edição de 2019 do festival da Côte d’Azur, "A Flor da Felicidade" não terá sido o filme mais fulgurante (afinal de contas, tivemos Tarantino, Malick & etc.), mas não há dúvida que foi dos que mais se distinguiu pela sua hábil combinação de estranheza e sedução, futurismo e simbolismo muito do presente — e para o presente.
Aliás, vendo agora o filme, com os seus cientistas com máscara e as respectivas experiências laboratoriais, não podemos deixar de fazer alguma associação com as atribulações sanitárias que estamos a viver, mesmo se, cinematograficamente, vogamos numa ficção de sugestivo artifício. Esta é, afinal, a história de "Little Joe" (título original do filme), uma flor criada em ambiente hiper-controlado, com uma vocação muito especial: dar felicidade aos humanos através da sua presença e odor…
Digamos que o pressuposto dramático do filme é minimalista, mas basta para ir instalando uma sensação de perturbação que, em boa verdade, coloca "A Flor da Felicidade" em terreno ambíguo. Parábola de terror? Fábula romântica? Em qualquer caso, a imagem tradicional e idílica das flores como sinais de um mundo de serena redenção está posta em causa…
Realizado pela austríaca Jessica Hausner (é o seu primeiro trabalho em língua inglesa), autora do belíssimo "Amor Louco" (2014), eis um filme que nos faz lembrar algumas variações clássicas de registos mais ou menos fantásticos, sem que isso o reduza a um banal exercício de imitação.
Há, em particular, um elaborado tratamento dos ambientes e das cores, sugerindo um realismo quase carnal que, em última instância, nos projecta em algo de surreal. Sem esquecer que Hausner se volta a afirmar como uma metódica directora de actores, com natural destaque para Emily Beecham, a cientista que começa a mostrar alguma inquietação face aos poderes de "Little Joe" — em Cannes, precisamente, Beecham arrebatou o prémio de melhor interpretação feminina.