Victoria Guerra e Chico Diaz — revisitando factos e fantasmas do ano de 1936


joao lopes
2 Out 2020 0:45

De que falamos quando falamos da adaptação cinematográfica de um romance como "O Ano da Morte de Ricardo Reis"? Pois bem, num certo sentido, falamos de uma tarefa impossível. Literalmente. Porquê? Porque a escrita de José Saramago é uma matéria de tal modo específica que resiste a qualquer noção corrente de "transposição" ou "ilustração" — é preciso encará-la como um obstinado labor para lidar com a ilusória transparência do mundo.

É isso mesmo que faz João Botelho, obviamente demarcando-se das convenções mais ou menos televisivas, em todo o caso, banalmente académicas que encaram a literatura como mera colecção de "peripécias" que importa "reproduzir". Nada disso: "O Ano da Morte de Ricardo Reis" é um filme sobre um tempo — o ano, justamente, é 1936 — em que o século XX se transfigura através de factos como a consolidação do salazarismo ou, na Alemanha, o avanço do nazismo.
Daí a fascinante ambivalência do filme. Assim, por um lado, deparamos com referências muito concretas a tais convulsões; ao mesmo tempo, por outro lado, tudo acontece através de personagens que parecem existir num limbo dramático. Onde? Entre a dimensão física e a vida fantasmática.
Desde logo, Ricardo Reis (Chico Diaz), o heterónimo de Fernando Pessoa que, tal como no romance, ganha vida, regressando da sua vida imaginária no Brasil a uma Lisboa que parece suspensa no tempo, etérea e indecifrável. Depois, o próprio Pessoa (Luís Lima Barreto), ainda segundo Saramago, deambulando pelo universo dos vivos durante mais nove meses depois da sua morte. Enfim, personagens tocadas por assombramentos vários como Marcenda (Victoria Guerra), a jovem cuja mão paralisada parece pertencer já a uma região de onde não se regressa, a não ser, talvez, através do beijo casto que troca com Ricardo Reis…
Conhecendo a paixão criativa de Botelho pelo enfrentamento das mais diversas obras literárias (Charles Dickens, Almeida Garrett, Agustina Bessa-Luís…), talvez possamos dizer que "O Ano da Morte de Ricardo Reis" funciona como uma derivação temática do seu "Filme do Desassossego" (2010), reinventando Bernardo Soares/Fernando Pessoa.


Em cena está a dificuldade de dizer e, mais do que isso, habitar o ser português, percorrendo a sua teimosa fixação nas sombras que o podem redimir ou que, cruelmente, irão acelerar a sua decomposição. Tudo isto em austeras imagens a preto e branco, assinadas por João Ribeiro — na sua modernidade, este é um cinema que não abdica dos fulgores de um tempo antigo.

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