joao lopes
30 Out 2020 22:31
Onde e como está a acontecer o cinema que realmente importa? Nestes tempos de muitas indefinições e inquietações, a questão é curiosa e sedutora, mas, em última instância, pode reduzir-se a um jogo floral mais ou menos culpabilizante que nos enreda numa deambulação inócua… Que dizer, por exemplo, do novo filme de Robert Zemeckis, "As Bruxas de Roald Dahl"?
Inicialmente programado para as salas dos EUA, acabou por ser retirado devido ao agravamento da pandemia em muitas zonas do país — resultado: um lançamento directo na plataforma HBO Max. Entretanto, em alguns países da Europa (incluindo Portugal) e também no Japão e na Austrália, "As Bruxas de Roald Dahl" está a ter um lançamento mais normal, à moda antiga, se assim nos podemos exprimir, isto é, nos cinemas.
Alguns poderão perguntar: trata-se, então, de um objecto de cinema que pertence mais a que lugar, as salas ou a Internet? Dispensemos o maniqueísmo da questão e sublinhemos o essencial: estamos perante um belo objecto de cinema, a confirmar que, no domínio da fantasia, mais ou menos apoiada em sofisticados efeitos especiais, Zemeckis continua a ser um dos autores mais importantes da produção made in USA. Recorde-se o seu magnífico título anterior, "Bem-vindos a Marwen" (2018), entre nós, infelizmente, apenas disponível na televisão por cabo.
Como explicita o título português, esta é uma adaptação do clássico "As Bruxas", de Roald Dahl, aliás já filmado em 1990 por Nicolas Roeg (entre nós então lançado como "As Bruxas"), com Anjelica Huston no papel central. Agora, é Anne Hathaway que assume a personagem da líder das bruxas (Grand High Witch), num registo de irresistível burlesco, tanto mais que a composição envolve a laboriosa aplicação de um sotaque europeu do Leste (?).
Estranhamente, foram muitos os críticos dos EUA que não valorizaram (ou nem sequer viram…) que Zemeckis transfigura de modo muito incisivo e intencional o quadro simbólico em que decorre a narrativa de Dahl: história da avó (a excelente Octavia Spencer) que ensina o neto (Jahzir Bruno) a defender-se da malvadez das bruxas apresenta-se com as suas componentes britânicas e europeias rasuradas, tudo se passando agora em cenários do sul dos EUA, no estado do Alabama, na década de 1960 — um universo social, cenográfico e musical por onde circulam muitas componentes da cultura afro-americana.
Será preciso acrescentar que esse novo enquadramento empresta à fábula de Dahl — sobre as forças do mal e a importância de cada um ser aquilo que é, sem disfarces — novas ressonâncias especificamente americanas?
Em qualquer caso, sublinhe-se também que nada disso faz do filme um objecto "demonstrativo" ou "panfletário", uma vez que Zemeckis é dos que (ainda) acredita na possibilidade de puro maravilhamento através do cinema. Mesmo através dos mais sofisticados efeitos especiais, nomeadamente na espantosa figuração dos ratinhos (= crianças que foram "modificadas" por acção das bruxas), este é um filme de paciente e obstinada sensibilidade tradicional.
Sublinhe-se, por isso, o misto de elegância e espectáculo que nasce de duas componentes vitais da mise en scène de Zemeckis: primeiro, a sábia gestão do espaço, através de uma complexa dinâmica de enquadramentos e movimentos de câmara; depois, o facto de estarmos perante uma fábula que não menospreza, antes valoriza, a metódica vibração das palavras (a composição de Stanley Tucci, como gerente do hotel, é nesse aspecto um pequeno prodígio de humor e inteligência).
Enfim, num tempo de tanto menosprezo pelo cinema-cinema, Zemeckis oferece-nos um filme completamente vanguardista na sua execução técnica, serenamente ancestral no espírito narrativo e também na pulsação afectiva. Aleluia, cinéfilos!