joao lopes
1 Jan 2021 18:30
Mais do que um cineasta independente, Abel Ferrara continua a ser um criador inclassificável, impossvível de reduzir a um rótulo, tendência ou movimento. Depois de "Tommaso" (2019), retrato íntimo de um artista americano a viver em Roma, povoado de ecos autobiográficos, aí está "Sibéria", uma parábola existencial em que realismo e onirismo são faces da mesma moeda.
Ferrara reencontra, assim, o actor de "Tommaso", Willem Dafoe. É, aliás, a sexta colaboração em que estão envolvidos, a provar que este é um cinema cuja verdade material e energia simbólica passam, e muito, pela persistente minúcia da composição dramática. Interpretando o proprietário de um bar esquecido no meio de uma paisagem montanhosa, Dafoe surge como uma espécie de último homem na Terra, a contas com os seus fantasmas.
A paisagem "siberiana" surge como uma entidade que não pode ser vista, muito menos descrita, como uma realidade meramente geográfica. Vogamos, de facto, através de sequências mais ou menos autónomas (o diálogo com o "duplo" do protagonista, o insólito encontro com o pai, a deambulação pelo deserto, etc.) cujo mapa só existe no interior de uma identidade assombrada.
Nesta perspectiva, "Sibéria" pode ser aproximado de "4:44, Último Dia na Terra" (2011), saga apocalíptica também com Dafoe no papel central. Ferrara prossegue, assim, uma aventura criativa em que a crueza existencial vai a par da nostalgia de um inomeável paraíso perdido. Sublinhemos, por isso, as contribuições decisivas de Stefano Falivene, na fotografia de ambíguo naturalismo, e Joe Delia, compositor de uma banda sonora saudosa de todos os romantismos.