joao lopes
10 Jan 2021 16:50
Para a maior parte dos espectadores, o nome do canadiano Howard Shore é habitualmente associado à saga que lhe valeu três Óscares, isto é, "O Senhor dos Anéis": melhor música para "A Irmandade do Anel" (2001); melhor música e melhor canção com "O Regresso do Rei" (2003). É uma ironia desconcertante, já que o capítulo central do seu trabalho para cinema envolve a colaboração regular com outro canadiano, David Cronenberg.
Agora que temos a possibilidade de rever em cópia restaurada (4K) um título central da filmografia de Cronenberg — "Crash" (1996), adaptação do livro homónimo de J. G. Ballard, publicado em 1973 (tardução portuguesa, ed. Elsinore) —, vale a pena sublinhar o modo como, desde o genérico de abertura, a música de Shore nos envolve neste mundo em que todos os desejos parecem contaminados pela atracção metálica dos automóveis.
Dito (ou escutado) de outro modo: "Crash" coloca em cena um grupo de homens e mulheres assombrados pela utopia de um prazer em que o êxtase sexual se confunde com a velocidade dos automóveis e, em particular, o aparato dos acidentes e do choque [crash].
Raras vezes o cinema terá filmado, assim, a nossa maquinaria desejante, para mais através de uma parábola cuja actualidade não se desvaneceu. Em jogo está a relação entre corpos e máquinas, numa vertigem que envolve todo os sistema de relações humanas e, no limite, o próprio conceito de civilização.
O romance de Ballard surgiu há quase meio século. Entretanto, está a fazer 25 anos (em maio) que o filme de Cronenberg abalou o Festival de Cannes, de lá saindo com um Prémio Especial do Júri (atribuído contra a opinião do respectivo presidente, Francis Ford Coppola); agora, continua a ser um prodigioso desafio cinematográfico, expondo os contrastes, por certo as contradições, entre o que somos e o que imaginamos ser — e, nessa medida, em particular, a nossa relação perversa com o poder tecnológico.