23 Jul 2021 0:54
É bem provável que o realizador russo Viktor Kosakovskiy tenha confundido o poder figurativo do documentário com o seu eventual papel ideológico. Ou seja: ao fazer "Gunda", sobre a vida de uma porca e seus filhotes numa quinta, Kosakovskiy parece querer sugerir que o destino das respectivas vidas está, apenas e só, nas mãos dos humanos — e tenta fazê-lo sem que esses mesmos humanos entrem nas suas imagens.
A morte espreita, por certo, de um algures que se pressente, mas "Gunda" opta por apresentar-se como a revelação de um verdadeiro santuário. Como se houvesse uma espécie de suficiência poética no facto de vermos Gunda e os seus leitões a mamar, uma e outra e outra vez, uma galinha de uma só perna a vigiar o espaço em volta ou as vacas a sair de um estábulo em câmara lenta…
Não é fácil, de facto, sustentar um discurso de exaltação da natureza sem começar por enunciar uma questão básica: de que falamos quando falamos de natureza? Kosakovskij tenta contornar essa questão através da afirmação de um realismo, apetece dizer, "natural". Em "Gunda", as rotinas dos animais são apresentadas como restos de um paraíso que nós deixámos de conhecer ou até mesmo de respeitar.
Seja como for, sublinhemos a curiosa e pouco frequente dimensão especificamente cinematográfica do objecto. A saber: o reconhecimento de que há um tempo dos animais que existe, e resiste, através de uma lógica muito própria que, talvez, hélas!, os humanos já não consigam entender. O que, enfim, confere a "Gunda" uma bizarra sedução: o seu naturalismo atrai qualquer coisa de surreal.