joao lopes
31 Dez 2021 0:21
Quando olhamos para a já longa filmografia de François Ozon (ele consegue manter a média de um novo trabalho em cada ano), não podemos deixar de reconhecer a versatilidade de um verdadeiro artesão — do gosto pelos textos teatrais (“Gotas de Água sobre Pedras Escaldantes”, 2000) ao melodrama histórico (“Frantz”, 2016), do musical (“8 Mulheres”, 2002) ao fresco social (“Graças a Deus”, 2018).
No seu novo filme, “Correu Tudo Bem”, um dos títulos marcantes da última edição do Festival de Cannes, descobrimo-lo a experimentar os caminhos do drama intimista mais radical. Em termos simples, esta é a história de um velho senhor (André Dussollier) que, depois de ter sofrido um AVC, quer envolver as suas filhas (Sophie Marceau e Geraldine Pailhas) na sua vontade final: uma morte assistida.
Nada a ver, entenda-se, com uma “tese” sobre a eutanásia. Ozon é peremptório em evitar qualquer generalização ou “deslocação” do seu filme para o domínio do panfleto político: “Correu Tudo Bem” centra-se num grupo restrito de personagens, desenvolvendo-se como um drama humano absolutamente singular.
Daí o paradoxo que o filme consegue manter: a perturbação inerente às suas matérias não impede, antes pelo contrário, um contido humor que contamina muitas situações. No limite, este é um filme de desmistificação da morte, ou melhor, de enfrentamento da morte como componente natural, ainda que indizível, do movimento da vida — de Renoir a Truffaut, Ozon é um herdeiro dos grandes humanistas do cinema francês.