22 Mai 2014 1:35
Não é um lugar-comum, mas uma evidência formal e existencial: para definirmos um filme de Jean-Luc Godard — sobretudo um filme como "Adieu au Langage" (competição) —, temos que dizer que o seu labor define um continente à parte, tecido de perguntas, dúvidas e experimentações que não pertencem a mais ninguém.
E, no entanto, não haverá obra que não esteja mais obsessivamente habitada pelos temas fracturantes dos nossos tempos — desde a decomposição dos valores humanistas clássicos até à ocupação do espaço específico do cinema pelas muitas normalizações televisivas —, conferindo-lhe uma estranha, perturbante e fascinante dimensão realista.
O que é, então, o realismo em Godard? Não, por certo, o das ilusões de espontaneidade que predominam no espaço audiovisual. Antes um realismo que nasce da noção ancestral (mais antiga que o próprio cinema) de que o mundo não se dá a ver como coisa transparente, exigindo a nossa vontade e, por certo, algum amor para o vermos, para o conseguirmos ver. Como diz Claude Monet, citado por Godard: "Não pintar o que se vê, já que não vemos nada, mas pintar o facto de não vermos".
"Adeus à Linguagem" antologia as tensões, e também os silêncios, de um grupo de personagens a lidar com a própria (im)possibilidade de prolongarem as suas relações. Nesta perspectiva, há aqui óbvios ecos narrativos e simbólicos de títulos como "Elogio do Amor" (2001), "A Nossa Música" (2004) e "Filme Socialismo" (2010), isto sem esquecermos a decisiva integração da manipulação "videográfica" das imagens e dos sons, por assim dizer, sistematizada em "História(s) do Cinema" (1994-98).
Se este é, para a história, o filme nuclear da 67ª edição do Festival de Cannes — no sentido que define a própria conjuntura de crise (entenda-se: criativa) em que somos levados a problematizar o futuro do cinema —, isso deve-se também à sua capacidade de colocar em cena uma dinâmica do presente que não exclui, antes celebra, uma distanciação plena de ternura e humor. Veja-se Roxy, o cão que pontua todo o filme como uma espécie de mensageiro incauto de uma nostalgia utópica da própria natureza — Godard é o cineasta que filma o mundo como a tragédia íntima da naturalidade que perdemos.