Obituário

Ali no espelho de Ali

Ao interpretar o seu próprio papel em "The Greatest" (1977), de Tom Gries, Muhammad Ali desafiava o estatuto tradicional de documentário e ficção; mais tarde, com "Ali" (2001), Michael Mann retratou a aliança vital entre o homem e o mito.

5 Jun 2016 23:22

Muhammad Ali não foi uma estrela de cinema, mas é um facto que a sua afirmação pública — e também a respectiva dimensão mitológica — não pode ser dissociada do cinema, em particular de "The Greatest" (1977), filme em que se expôs como num espelho, interpretando o seu próprio papel. Dir-se-ia um contraponto histórico à transfiguração radical do actor que Robert De Niro e Martin Scorsese viriam a consumar em "Touro Enraivecido" (1980).

Hoje em dia, tal "coincidência" entre actor e personagem pode parecer coisa banal, de algum modo consagrada pela proliferação de muitos registos documentais (e também por alguns estereótipos televisivos) . Convenhamos, porém, que tal estava longe de ser evidente no contexto em que surgiu "The Greatest" — 1977 foi, aliás, um ano de fenómenos bem diferentes como "A Guerra das Estrelas", "Encontros Imediatos do Terceiro Grau" ou "Annie Hall".

Dir-se-ia que o pugilista/actor participou na "invenção" de uma forma ambivalente de exposição pública — algures entre documentário e ficção — em que o cinema é, de uma só vez, memória histórica e actualização realista dessa memória. Tom Gries, o realizador de "The Greatest" (morreu de ataque cardíaco, aos 54 anos, ainda em 1977), deixou, aliás, alguns títulos sintomáticos das transformações estruturais que Hollywood viveu nas décadas de 60/70, com destaque para "Will Penny" (1967), um western crítico protagonizado por Charlton Heston.

Podemos, assim, desenhar a herança simbólica de Muhammad Ali a partir de um curioso triângulo cinematográfico. Para além de "The Greatest", os seus dois outros vértices são definidos por "Quando Éramos Reis" (1996), o documentário biográfico consagrado nos Oscars, e "Ali" (2000), de Michael Mann. Neste último, Mann mostrava que, afinal, só é possível biografar uma personagem mitológica ultrapassando qualquer efeito "naturalista" de "reconstituição" histórica — Muhammad Ali apelava a que o cinema fosse, literalmente, maior que a vida.

cinemaxeditor
5 Jun 2016 23:22