16 Mai 2017 0:11
Ironia histórica e cinéfila: foi há cerca de quinze anos que a projecção digital entrou numa fase decisiva de implantação nos mercados de todo o mundo; foi também por essa altura que o Festival de Cannes começou a dar crescente visibilidade às cópias restauradas de clássicos filmados em película. Que cópias? Pois bem, cópias digitais.
Não admira que, ao celebrar a sua 70ª edição, o certame tenha decidido preeencher uma parte muito significativa da sua secção ‘Cannes Classics’ com títulos que, de uma maneira ou de outra, deixaram marcas indeléveis na história do festival. Eis algumas das escolhas:
* LE SALAIRE DE LA PEUR / O Salário do Medo (1953) — Com Yves Montand, Charles Vanel, Peter van Eyck, etc., o filme de Henri-Georges Clouzot (sobre o transporte de uma quantidade assustadora de nitroglicerina) é um clássico incontornável do thriller — sem esquecer a admirável fotografia a preto e branco assinada por Armand Thirard.
* BLOW-UP / História de um Fotógrafo (1966) — Saindo de Itália, para filmar em Londres, Michelangelo Antonioni criava um dos objectos mais intensamente simbólicos das ilusões e desilusões da década de 60; a história do fotógrafo perdido nas suas próprias imagens é, em última instância, uma fábula cruel sobre o logro de qualquer olhar.
* AI NO KORÎDA / O Império dos Sentidos (1976) — A "corrida do amor" filmada pelo japonês Nagisa Oshima — a aura de escândalo que envolveu o filme está longe de esgotar a sua inteligência e subtileza, até porque recalca a sua mais perturbante dimensão: a do amor como uma derivação radical, insensata e indizível, da pulsão de morte [trailer].
* ALL THAT JAZZ / O Espectáculo Vai Começar (1979) — Se ninguém duvida que o musical clássico desapareceu da produção de Hollywood, então talvez se possa dizer que este filme de Bob Fosse sobre os bastidores do espectáculo é a sua comovente celebração fúnebre — com a melhor composição de sempre de Roy Scheider.
* EL SOL DEL MEMBRILLO / O Sol do Marmeleiro (1992) — Um dos maiores cineastas espanhóis, Victor Erice, filma o trabalho do pintor Antonio Lopez como uma antologia de rituais de observação e integração da luz natural — por certo uma das proezas mais fascinantes de toda a história do género documental.
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Na lista de filmes restaurados, Cannes dará ainda a ver títulos como "Madame de…" (1953), a obra-prima romanesca de Max Ophüls, "Belle de Jour" (1966), de Luis Buñuel, com Catherine Deneuve a representar para além das fronteiras do desejo e do crime, ou "A River Runs Through It" (1992), prodigiosa realização de Robert Redford a partir das memórias do escritor Norman Mclean, com um jovem actor quase desconhecido, de nome Brad Pitt.
Isto sem esquecer um lote apreciável de filmes documentais, abordando temas como a presença do cinema belga em 70 anos de Cannes, a personalidade enigmática de Cary Grant ou as memórias cinéfilas do crítico e historiador Jean Douchet. Enfim, os clássicos de Cannes distinguem-se sempre por um grão de modernidade.